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Esporte transmídia: o Cartola e as novas práticas do torcer no Campeonato Brasileiro de Futebol

Deporte transmidia: Cartola y las nuevas prácticas del aficionado por el Campeonato Brasileño de Fútbol

Resumo

O objetivo deste artigo é estudar a transmidialidade no Cartola refletindo sobre como o jogo é utilizado estrategicamente para o engajamento de torcedores com o Campeonato Brasileiro de Futebol. O jogo consiste em uma disputa fictícia na qual usuários montam seus times com jogadores reais para competir com times de outros usuários. Para isso, será utilizado o conceito de narrativa transmídia, que pode ser entendida como a dispersão de elementos em várias plataformas gerando a expansão de conteúdo de forma coordenada. Como corpus de análise foi coletado conteúdo veiculado na TV nas rodadas do mês de outubro de 2019, além das redes sociais, especificamente o Twitter, site oficial e aplicativo do Cartola. A partir do material analisado, percebeu-se que o jogo contribui não apenas para aumentar o engajamento dos torcedores com o campeonato nacional, mas também alterou lógicas vigentes nas práticas do torcer e nas interações comunicacionais e sociais relativas ao futebol.

Palavras-chave
Cartola; Gamificação; Narrativa transmídia; Futebol; Interação

Resumen

Este artículo se propone a estudiar cómo la narrativa transmedia en el Cartola refleja sobre la forma de cómo el juego de Fútbol es utilizado estratégicamente para la participación de los aficionados por el Campeonato Brasileño. El juego consiste en una competición ficticia en la cual los usuarios tienen que crear equipos con futbolistas reales y así desafiar a otros usuarios. Por eso, el concepto de narrativa transmedia será el punto clave de este estudio. El concepto representa un proceso en el que los elementos de contenido se difunden por medio de múltiples plataformas de forma coordinada. Como corpus de análisis, recogimos a contenidos difundidos en la televisión durante las secuencias de combinaciones del mes de octubre de 2019, además de las redes sociales, específicamente Twitter, el sitio web oficial y aplicativo del Cartola. A partir del material analizado, se percibió que el juego contribuye no sólo para aumentar la participación de los aficionados por el Campeonato nacional, pero también cambió la lógica actual en las prácticas de animar y en las interacciones comunicacionales y sociales relacionadas al fútbol.

Palabras clave
Cartola; Gamificación; Narrativa transmedia; Fútbol; Interacción

Abstract

This article aims to study how transmedia storytelling reflects how Brazilian supporters engage with Brazilian Soccer League – Brasileirão – through the game Cartola. This game consists of a fictitious competition in which users must create and line up teams based on real soccer players to challenge other users. For this reason, the concept of transmedia storytelling is a key base in this work. Transmedia represents a process in which content elements get spread across multiple platforms in a coordinated manner. As a corpus of analysis, we collected content broadcasted on TV during the rounds of October 2019, in addition to social networks, specifically Twitter, Cartola’s official website and app. We noticed that the game contributes to increasing the fans’ engagement with the national championship and changes the current logic in the ways of supporting and in the communicational and social interactions related to football.

Keywords
Cartola; Gamification; Transmedia storytelling; Soccer; Interaction

Introdução

Este artigo tem como objetivo compreender como a transmidialidade se apresenta no Cartola, fantasy game criado em 2005 pelo Grupo Globo. O jogo consiste em uma disputa fictícia na qual as pessoas montam seus times com jogadores de futebol da vida real para competir com times de outros usuários. Este trabalho busca também compreender como o jogo é utilizado estrategicamente no engajamento de torcedores com o Campeonato Brasileiro de Futebol Série A. Propõe ainda analisar como o Cartola utiliza as plataformas transmídia para engajar as práticas do torcer no “Brasileirão” e perceber se há alguma plataforma, dentre as analisadas, que se destaca na estratégia transmídia proposta pelo jogo. A partir de conceitos como a narrativa transmídia e a gamificação, busca-se discutir as dinâmicas sociais e interacionais relacionadas à promoção do esporte mais popular do país, o futebol. Como corpus de análise, foi coletado conteúdo referente às partidas da 23ª a 28ª rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol, durante o mês de outubro de 2019.

O Cartola, gamificação e fantasy games

O Cartola é considerado o segundo maior fantasy game esportivo do mundo com 30 milhões de downloads e seis milhões de times ativos em 2021 (UOL, 2022UOL. Brasileiro ganha R$ 1 mi em fantasy game. É jogo de azar? Como funciona?, 2022. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2022/05/25/fantasy-games-sports-tech-esportes-entretenimento-milhao-milionario.html. Acesso em: 22 jun. 2022.
https://www.uol.com.br/tilt/noticias/red...
). Como ponto de partida para o entendimento do jogo, surgem dois conceitos importantes, a gamificação e os fantasy games. O primeiro deles pode ser entendido como:

[...] o processo de aplicação de mecânicas de jogo em situações de não-jogo, que, no geral, tem como objetivo intensificar o engajamento dos indivíduos numa dada circunstância. Seu principal objetivo é imbuir atividades (que por si só não se revelam tão atraentes) com a aprazibilidade, a motivação e a diversão comumente associadas aos jogos digitais. [...] A intenção é fazer com que o indivíduo aja como se estivesse jogando, mesmo que a circunstância na qual se encontra não lhe seja apresentada como tal: os envolvidos “jogam” de modo subliminar, isto é, sem a plena consciência da natureza das ações e dos comportamentos em curso

(CRUZ JÚNIOR, 2014CRUZ JÚNIOR, G. Burlando o círculo mágico: o esporte no bojo da gamificação. Movimento, v. 20, n. 3, p. 941-963, 2014., p. 944, grifo nosso).

Zichermann e Cunningham (2011) destacam algumas características da gamificação: 1) pontuação; 2) existência de níveis e fases; 3) conquistas “intra-jogo”; 4) insígnias; e 5) construção de rankings. Deste modo, a primeira dessas características é a mensuração por pontos do rendimento do participante na atividade gamificada. A pontuação é um requisito primordial para todos os sistemas de gamificação, pois são eles que definem como o game será jogado e como o rendimento dos atletas reais interfere em como os usuários são afetados (ZICHERMANN; CUNNINGHAM, 2011ZICHERMANN, G.; CUNNINGHAN. C. Gamification by Design: Implementing Game Mechanics in Web and Mobile Apps. O’Reilly Media, 2011.; CRUZ JÚNIOR, 2014CRUZ JÚNIOR, G. Burlando o círculo mágico: o esporte no bojo da gamificação. Movimento, v. 20, n. 3, p. 941-963, 2014.). A segunda característica é a existência de níveis e fases, que sinalizam a evolução do jogador no jogo proposto, mostrando sua evolução, desafios etc. O terceiro fator são as conquistas, um sistema de “micro” desafios dentro de um desafio maior, que não necessariamente interferem no andamento processual do jogo. Servem como estímulos para os usuários testarem suas habilidades e limites dentro da competição. O quarto elemento são as “insígnias”, vinculadas aos sistemas de conquista e tidas como formas secundárias de recompensa, que premiam feitos excepcionais do jogador. O último aspecto é o ranqueamento ou quadro de líderes: a formação do ranking é a atividade central da plataforma do jogo e serve de um instrumento para mensuração e comparação do desempenho dos participantes do jogo.

Fantasy games, segundo Tussey (2018, p. 5)TUSSEY, E. Transmedia sports: the National Basketball Association, emojis, and personalized participation. In: FREEMAN, M.; GAMBARATO, R. R. (ed.). The Routledge Companion to Transmedia Studies. New York: Routledge, 2018. p. 107-115., podem ser conceituados como “uma plataforma lucrativa no qual conteúdo de dado esporte, informação e narrativas são cooptadas para o uso social de seus fãs”. O autor explica que os fantasy games são baseados na criação de equipes originadas de jogadores reais feitas por usuários que competem entre si. Neste contexto, os feitos desses atletas nos jogos oficiais têm duplo significado: além de alterar o resultado do jogo em si, altera a competição paralela que existe entre seus usuários participantes. Por isso, os organizadores de eventos esportivos e emissoras oficiais têm incorporado a gamificação e os fantasy games em suas narrativas como estratégia de aproximação para com os torcedores/consumidores de futebol.

O Cartola segue as lógicas descritas anteriormente. O jogo em seus moldes atuais pode ser acessado via computador e em forma de aplicativo para Android, iOS e Windows Phone. Nele, o usuário escala 11 jogadores mais um treinador dos clubes participantes do Campeonato Brasileiro de Futebol Série A (Figura 1).

Figura 1
Exemplo de escalação na plataforma do Cartola no Windows 10 para computador

A pontuação no Cartola é reflexo das atuações dos atletas em campo durante os jogos do Campeonato Brasileiro. Ela pode variar de acordo com o rendimento e os critérios utilizados para avaliar as posições em campo dos atletas. De acordo com a atuação do atleta em campo na vida real, o usuário pode perder ou ganhar pontos. Caso o atleta escalado pelo usuário não entre em campo, não há pontuação. O usuário necessita ainda assinalar um capitão para o time, que terá sua pontuação multiplicada por dois, seja o valor positivo ou negativo, ao final da rodada. É possível escolher os atletas para a rodada até duas horas antes do início do primeiro jogo da rodada do Brasileirão e o mercado reabre sempre horas após o último jogo.

A pontuação varia também de acordo com a posição do atleta. Goleiros, defensores, meio-campistas e atacantes são avaliados seguindo critérios específicos de cada posição, que variam desde defesas difíceis, gols marcados, bolas roubadas ou perdidas, cartões etc. A atuação dos atletas é avaliada a partir de dados e informações presentes nas súmulas oficiais divulgadas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), além dos dados coletados pelas próprias equipes de transmissão do Grupo Globo.

Mesmo que não possua fases e níveis propriamente ditos, o Cartola é dividido em 38 rodadas concomitantes às do Campeonato Brasileiro de Futebol. Após cada rodada, o rendimento do participante é calculado de acordo com os resultados obtidos pelos atletas escolhidos para compor seu time no jogo. A plataforma permite disputas paralelas dentro da competição principal, como a criação de desafios entre duplas, ligas ou confrontos eliminatórios contra outros participantes do jogo.

Já as insígnias na lógica da gamificação são as formas de recompensa secundárias de um jogo. No caso do Cartola, esse paralelo pode ser feito com as “cartoletas”, moeda virtual da plataforma. Ao iniciar a disputa, cada usuário recebe 100 cartoletas que serão utilizadas nas negociações dos atletas durante a competição. Nessa lógica, jogadores com melhores atuações e, consequentemente, mais pontos possuem valores maiores. Além disso, a valorização ou desvalorização dos jogadores se dá de acordo também com suas atuações. Se em uma partida, ele obtiver uma pontuação maior do que a média de suas atuações anteriores, ele é valorizado. Caso contrário, perde valor. Dessa forma, as cartoletas podem ser consideradas uma forma de recompensa secundária, uma vez que o ganho dessas moedas virtuais não é o objetivo principal do game. Por outro lado, sua aquisição permite que seus usuários tenham mais condições de adquirir jogadores valorizados e, teoricamente, tenham mais possibilidades de melhores resultados.

A geração de rankings de competição (Figura 2) é a essência do Cartola. Ao final de 38 rodadas, o jogo premia o cartoleiro que possuir mais pontos. Além disso, o jogo cria outros rankings paralelos, como o relativo ao turno (o campeonato brasileiro é dividido em dois turnos de 19 rodadas), mensal, da rodada e de patrimônio, associado às cartoletas.

Figura 2
Exemplo de ranqueamento produzido no Cartola

Narrativas esportivas transmídia

Scolari (2015)SCOLARI, C. Narrativas transmídia: consumidores implícitos, mundos narrativos e branding na produção da mídia contemporânea. Parágrafo, v. 3, n.1, p. 7-19, 2015. define narrativas transmídia como estruturas particulares de narrativa que se expandem por diversas linguagens, sejam elas verbais ou icônicas, ou midiáticas, como o cinema, quadrinhos, tv e videogames. O autor aponta que essas conexões não são adaptações de uma mídia para outra, mas expansões que tendem a concordar com a plataforma escolhida para ser a principal e contribuem para a construção de um mundo narrativo amplo e complexo. Para Scolari (2005, p. 4)SCOLARI, C. Narrativas transmídia: consumidores implícitos, mundos narrativos e branding na produção da mídia contemporânea. Parágrafo, v. 3, n.1, p. 7-19, 2015., a narrativa transmídia é “o dispositivo de criação de narrativas para a produção de significado”. Já Jenkins (2013)JENKINS, H. A Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2013., diz que a narrativa transmídia representa um processo em que elementos integrais de um conteúdo se dispersam sistematicamente por meio de múltiplos canais, com o propósito de criar uma unificada e coordenada experiência de entretenimento. Teoricamente, cada mídia faz a sua própria contribuição para a expansão e/ou desfecho da história ou conteúdo.

Fechine (2014)FECHINE, Y. Interações discursivas em manifestações transmídias. In: FECHINE, Y.; CASATILHO, K.; REBOUÇAS, M.; ALBUQUERQUE, M. (ed.). Semiótica nas práticas sociais: Comunicação, Artes, Educação. São Paulo: Companhia das Letras e Cores, 2014. p. 117-133. trabalha com os conceitos de textos transmidiáticos, que seriam as articulações de enunciados relacionados e distribuídos por inúmeras plataformas. “Corresponde ao todo que resulta da articulação das partes proposta pelo enunciador e operada pelo destinatário” (FECHINE, 2014FECHINE, Y. Interações discursivas em manifestações transmídias. In: FECHINE, Y.; CASATILHO, K.; REBOUÇAS, M.; ALBUQUERQUE, M. (ed.). Semiótica nas práticas sociais: Comunicação, Artes, Educação. São Paulo: Companhia das Letras e Cores, 2014. p. 117-133., p. 121). Tal articulação se dá por meio de estratégias e práticas de interação promovidas pela cultura participativa fomentada pela convergência. A autora ainda destaca o processo de transmidiação – o desenvolvimento de conteúdos textuais em torno de uma mídia de referência a partir do qual há a propagação e expansão desse material graças à junção de outras plataformas à cadeia criativa.

Hutchins e Sanderson (2017)HUTCHINS, B.; SANDERSON, J. The primacy of sports television: Olympic media, social networking services, and multi-screen viewing during the Rio 2016 games. Media International Australia, v. 164, n. 1, p. 32-43, 2017. apontam que apesar da maior variedade de plataformas de discussão das narrativas esportivas, as histórias sempre são iniciadas a partir das competições. Tussey (2018)TUSSEY, E. Transmedia sports: the National Basketball Association, emojis, and personalized participation. In: FREEMAN, M.; GAMBARATO, R. R. (ed.). The Routledge Companion to Transmedia Studies. New York: Routledge, 2018. p. 107-115. também afirma que narrativas esportivas são geradas por um texto principal, no caso as competições, qualquer que elas sejam, como jogos, partidas, corridas, provas etc. Entretanto, esses textos principais seriam circundados por uma série de textos periféricos, os paratextos.

Mittel (2015)MITTEL, J. Complex TV: the poetics of contemporary television storytelling. New York: New York University Press, 2015. reitera que os paratextos consistem em elementos de introdução e/ou promoção de dado texto principal, no caso do esporte – as competições. O autor também aponta que é importante não confundir paratextos com práticas transmídia, que são basicamente os textos criados a partir da estratégia transmídia deliberada previamente para a expansão da narrativa. Fechine (2014)FECHINE, Y. Interações discursivas em manifestações transmídias. In: FECHINE, Y.; CASATILHO, K.; REBOUÇAS, M.; ALBUQUERQUE, M. (ed.). Semiótica nas práticas sociais: Comunicação, Artes, Educação. São Paulo: Companhia das Letras e Cores, 2014. p. 117-133. traça uma distinção entre a prática e a estratégia transmídia. Por estratégia, entende um conjunto de propostas elaboradas pelos responsáveis por um conteúdo para engajamento dos destinatários deste mesmo conteúdo. Nesse contexto, a estratégia transmídia pode ser dividida em dois outros aspectos: estratégias transmídia de propagação e estratégias transmídia de expansão. Na propagação há a retroalimentação dos conteúdos em várias mídias e plataformas. A lógica dessa estratégia é propagar a informação para manter o interesse do consumidor desse conteúdo e constituir comunidades de interesses. Já a expansão, para a autora, se baseia em procedimentos que complementam e expandem o universo narrativo para além da TV ou qualquer outra plataforma principal. São propostas extensões no texto principal em várias outras plataformas, que não a original.

O exemplo utilizado por Fechine (2014, p. 122)FECHINE, Y. Interações discursivas em manifestações transmídias. In: FECHINE, Y.; CASATILHO, K.; REBOUÇAS, M.; ALBUQUERQUE, M. (ed.). Semiótica nas práticas sociais: Comunicação, Artes, Educação. São Paulo: Companhia das Letras e Cores, 2014. p. 117-133. sobre estratégia transmídia é a TV, que, frequentemente, delibera a estratégia de retroalimentação para “‘repercutir’ um universo narrativo em redes sociais na web ou fora dela acionando o gosto dos consumidores por saberem mais sobre aquilo que consomem na mídia de referência”. Segundo Brooker (2004)BROOKER, W. Living on Dawson’s Creek: teen viewers, cultural convergence, and television overflow. In: ALLEN, R. C.; HILL, A. (ed.). The television studies reader. Abingdon, UK: Routledge, 2004. p. 569-580., essa lógica pode ser denominada transbordamento televisivo, uma vez que as narrativas do texto principal continuam nas plataformas digitais. Nos esportes, esse transbordamento pode ser visto nas mesas redondas, melhores momentos, reprises das partidas, análises e comentários sobre as competições. Tussey (2018)TUSSEY, E. Transmedia sports: the National Basketball Association, emojis, and personalized participation. In: FREEMAN, M.; GAMBARATO, R. R. (ed.). The Routledge Companion to Transmedia Studies. New York: Routledge, 2018. p. 107-115. também afirma que essa lógica é inerente à narrativa transmídia, uma vez que ela não se limita ao evento/texto principal, mas se estende aos seus dias anteriores e posteriores. O autor sugere que a lógica das narrativas esportivas é a mesma dos produtos televisivos e se assemelham às novelas ou seriados, por exemplo, e que cada temporada possui um enredo, personagens e história a ser contada.

Tussey (2018)TUSSEY, E. Transmedia sports: the National Basketball Association, emojis, and personalized participation. In: FREEMAN, M.; GAMBARATO, R. R. (ed.). The Routledge Companion to Transmedia Studies. New York: Routledge, 2018. p. 107-115. aponta que a lógica de narrativa transmídia no esporte segue um fluxo: os textos/eventos começam na transmissão televisiva e as narrativas produzidas a partir daí são dissecadas em várias outras plataformas. A começar pela própria televisão, na qual as ligas esportivas são tema de programas específicos e mesas de discussão; passando pelo conteúdo escrito como jornais, revistas e websites, que alimentam as narrativas e histórias, além de expandi-las; conteúdo audiovisual que gera material como “melhores momentos e notícias para manter os consumidores atualizados. E por último, realizando a integração de todo o fluxo, as redes sociais digitais, que recebem inúmeros conteúdos oficiais das mais variadas narrativas esportivas, além de ser notabilizada como o espaço onde os fãs estão disponíveis para conversação e debate. A intenção principal dos organizadores e produtores de conteúdos esportivos é utilizar as estratégias transmídia para promover o engajamento com a audiência primordialmente digital, além de direcionar a conversação.

Já as práticas transmídias estão relacionadas com a performance dos consumidores por meio de intervenções nos conteúdos propostos inicialmente pelos produtores. Segundo Fechine (2014, p. 122)FECHINE, Y. Interações discursivas em manifestações transmídias. In: FECHINE, Y.; CASATILHO, K.; REBOUÇAS, M.; ALBUQUERQUE, M. (ed.). Semiótica nas práticas sociais: Comunicação, Artes, Educação. São Paulo: Companhia das Letras e Cores, 2014. p. 117-133., essas intervenções podem ser consideradas modalidades de “trabalho, resposta ou cooperação textual”.

Estratégia e prática transmídia são conceitos que podem ser relacionados também aos pressupostos de “ação interativa” e “participação”, propostos por Rampazzo Gambarato (2012)RAMPAZZO GAMBARATO, R. Signs, systems and complexity of transmedia storytelling. Estudos em Comunicação, n.12, p. 69–83, 2012. e Rampazzo Gambarato e Tárcia (2017)RAMPAZZO GAMBARATO, R.; TÁRCIA, L. P. T. Transmedia strategies in journalism. Journalism Studies, v. 18, n. 11, p. 1381-1399, 2017.. A ação interativa permite a audiência se relacionar com o conteúdo ou plataforma pressionando um botão ou um controle para decidir o caminho para experienciar o conteúdo sem alterar a história. A participação, por outro lado, convida espectadores, usuários ou jogadores a se engajar com o conteúdo de uma maneira que expresse a sua criatividade e influencie o resultado daquela interação.

Scolari (2015)SCOLARI, C. Narrativas transmídia: consumidores implícitos, mundos narrativos e branding na produção da mídia contemporânea. Parágrafo, v. 3, n.1, p. 7-19, 2015. aponta que as práticas transmídia são baseadas na multiliteralidade: a habilidade de interpretar discursos de diferentes mídias e linguagens. Dessa maneira, o autor afirma que a lógica transmídia não afeta apenas o texto, mas transforma os processos de produção e de consumo de informação. Ele também sugere que as narrativas transmídia são uma oportunidade de “as corporações ampliarem suas bases e captarem diferentes grupos de consumidores” (SCOLARI, p. 6, 2015). Veras e Porém (2019, p. 172) ressaltam que a “criação e o compartilhamento de histórias por meio da comunicação são tão importantes nas organizações quanto a comercialização de produtos e serviços”. As autoras apontam que essas narrativas feitas pelas organizações envolvem questões imateriais, como representações, signos e valores; além das histórias, que podem ser elaboradas em diferentes plataformas, sejam eles audiovisuais, impressos ou digitais.

Tussey (2018)TUSSEY, E. Transmedia sports: the National Basketball Association, emojis, and personalized participation. In: FREEMAN, M.; GAMBARATO, R. R. (ed.). The Routledge Companion to Transmedia Studies. New York: Routledge, 2018. p. 107-115. sinaliza que essas narrativas, tendo como base as plataformas digitais, deram voz a vários novos públicos que tornaram as narrativas esportivas mais rápidas, complexas e diversas. Veras e Porém (2019, p. 172)VERAS, T. S. F.; PORÉM, M. E. Organizações e narrativas transmídia: um olhar estratégico e comunicacional. In: MÉDOLA et al. (ed.). Significações e estratégias midiáticas. Aveiro: Ria Editorial, 2019. afirmam que “os atores das organizações podem se apropriar dessas histórias de forma estratégica, utilizando-as como ação de comunicação junto aos seus públicos”. Essas relações se dão uma vez que os produtores contam com o interesse e habilidade do público de operar variadas plataformas e empregar redes sociais digitais para se conectar de novas maneiras. Esse modelo de interações fomenta a circulação de textos em suas variadas formas, além de desenvolver também novas formas de filtragem de conteúdo, uma vez que não são apenas os grandes conglomerados de comunicação que possuem voz nos processos de interação. Oliveira (2013, p. 120)OLIVEIRA, A. C. As interações discursivas. In: OLIVEIRA, A. C. (ed.). As interações sensíveis: ensaios de sociossemiótica a partir da obra de Eric Landowski. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2013. p. 235–249. aponta interação ou interações discursivas como processo “no qual as manifestações resultam das diferentes modalidades de participação propostas pelo enunciador ao enunciatário no fazer do próprio enunciado”. Segundo a autora, essas interações abrem caminho para compreender melhor uma ordem variada de textualidades inauguradas pela digitalização e convergência de mídias.

Não é apenas futebol, é comunicação

Frandsen (2014)FRANDSEN, K. Mediatization of sports. In: LUNDBY, K. (ed.). Mediatization of communication. Berlin, Boston: De Gruyter Mouton, 2014. p. 525-542. e Quintela (2021)QUINTELA, G. P. Comunicação organizacional, esporte e narrativa transmídia: uma análise da estratégia de interação organizacional da Fórmula 1. 2021. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021. apontam que, nesse contexto, o esporte e a mídia tem uma relação interdependente alimentada por interesses recíprocos. Para o esporte é relevante ter a presença da mídia como elemento intensificador de popularidade, audiência e capital. Para a mídia, essa relação também gera interesse em várias frentes, como jornalística, organizacional, comunicacional e econômica. No futebol brasileiro, tanto o Grupo Globo quanto o Campeonato Brasileiro de Futebol representam essa lógica. Mesmo não acontecendo de forma deliberada e organizada como atualmente, o esporte e a mídia sempre tiveram uma relação transmidiática, uma vez que desde o rádio, ou com os veículos impressos e depois com a TV, a mídia passava dias repercutindo e analisando eventos esportivos.

No caso do Cartola, essa incorporação de novas modalidades de participação está atrelada à narrativa transmidiática proposta pelo Grupo Globo, organização detentora desde 1987 (SANTOS, 2013SANTOS, A. D. G. A Rede Globo e a transmissão do Campeonato Brasileiro. Eptic, v. 15, n. 3, p. 205-215, 2013.) dos direitos de transmissão da Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol. Para compreender em que medida e intensidade a transmidialidade se manifesta na estratégia de engajamento do game com seus fãs, foram coletados conteúdos veiculados na TV durante as transmissões das partidas e material a partir da hashtag #CartolaFc no Twitter1 1 Disponível em: https://twitter.com/cartolafc. Acesso em: 1 jun. 2019. , além da página oficial2 2 Disponível em: https://cartolafc.globo.com. Acesso em: 1 jun. 2019. e do aplicativo do jogo. A escolha pelo Twitter se deu por dois motivos: a maior facilidade de coleta e uma vez que o conteúdo publicado é o mesmo de outras redes sociais, como Facebook3 3 Disponível em: https://www.facebook.com/cartolafc. Acesso em: 1 jun. 2019. e Instagram4 4 Disponível em: https://www.instagram.com/cartolafc. Acesso em: 1 jun. 2019. . Todo o conteúdo foi coletado manualmente a partir da 23ª a 28ª rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol durante o mês de outubro de 2019.

A metodologia utilizada neste trabalho é baseada na articulação e adaptação do modelo de análise de grandes eventos propostos por Rampazzo Gambarato (2012)RAMPAZZO GAMBARATO, R. Signs, systems and complexity of transmedia storytelling. Estudos em Comunicação, n.12, p. 69–83, 2012. e Rampazzo Gambarato e Tárcia (2017)RAMPAZZO GAMBARATO, R.; TÁRCIA, L. P. T. Transmedia strategies in journalism. Journalism Studies, v. 18, n. 11, p. 1381-1399, 2017.. No modelo, as autoras propõem a análise de eventos transmidiáticos a partir da reflexão do contexto, planejamento estratégico e execução destes eventos. Aliado a isso, a proposta analítica é baseada em dez aspectos: 1) premissa e propósito – questões ligadas à natureza do evento, sua magnitude e compreensão da influência de suas ações na comunicação; 2) estrutura e contexto, como a organização da estratégia transmídia proposta, profissionais envolvidos, infraestrutura disponível e as operações que foram planejadas e executadas; 3) narrativa transmídia em si, que envolve os acontecimentos primários e paralelos do evento; 4) construção de mundos – a ideia de que o mundo narrativo no qual a estratégia transmídia está sediada é robusto o suficiente para suportar múltiplas expansões; 5) personagens implicados na narrativa, jornalistas, atletas, torcedores, personagens de reportagens, fontes de informação para serem divulgadas, além da audiência como colaboradores; 6) Expansões, ou seja, narrativas espalhadas por meio de múltiplas plataformas para expandir o conteúdo tirando vantagem de cada plataforma; 7) plataformas de mídia e gêneros – a narrativa transmídia pode abarcar várias áreas da Comunicação, como jornalismo, publicidade, marketing etc. e diferentes dispositivos tecnológicos; 8) mercado e audiência, o escopo de audiência e público do evento; 9) engajamento, a relação entre a narrativa e o público interessado nos aspectos essenciais da estratégia transmídia; e 10) estética, os elementos visuais e de áudio contribuem para a narrativa e a melhora da experiência transmídia desvelada por meio das múltiplas plataformas.

Neste contexto, foram criados quatro operadores de análise (Quadro 1) para compreender como se dão as interações entre a estratégia transmidiática do jogo e as alterações nas práticas do torcer no Campeonato Brasileiro de Futebol Série A.

Quadro 1
Operadores de análise da pesquisa

Plataforma Transmídia de Informação

Esse operador analítico está concentrado na página oficial do jogo hospedada no website do programa televisivo Globo Esporte e na cobertura de imprensa de outros veículos do Grupo Globo, como os jornais “O Globo” e “Extra”. As duas plataformas têm entre si dinâmicas diferenciadas. A página oficial do Cartola concentra inúmeras informações textuais e audiovisuais sobre o jogo, que vão desde matérias jornalísticas, dicas de como escalar as equipes na competição, infográficos sobre os atletas mais escalados em cada rodada e tutoriais sobre dúvidas gerais relacionadas ao funcionamento do fantasy game. Dessa forma, pode-se afirmar que o conteúdo produzido pelo Cartola é fluido e apresenta os quatro tipos de escrita sobre esporte propostos por Rowe (1992)ROWE, D. Modes of sports writing. In: DAHLGREN, P.; SPARKS, C. (ed.). Journalism and popular culture. London: SAGE, 1992. p. 96-112.: 1) hard news, que focam a escrita basicamente nos eventos esportivos e trata os assuntos de forma impessoal e direta; 2) soft news, que tem uma orientação voltada para a contação de histórias e o entretenimento; 3) retórica ortodoxa, que seria o oposto da lógica do hard news, tentando levar ao público a subjetividade por trás dos eventos; e 4) textos de análise reflexiva, que apresentam certo teor crítico, mas são produzidos, geralmente, por especialistas e focam em compartilhamento de experiências e afetividade.

A cobertura feita pelos outros veículos do Grupo Globo tem como foco apenas as dicas para os usuários. Sendo assim, apresentam textos parcialmente presentes no modelo de análise reflexiva e produz para a audiência análises feitas por especialistas, tentando criar laços de afetividade com o leitor ao formatar a análise em forma de dicas, porém sem realizar reflexões profundas sobre o futebol ou o game fantasy.

Figura 3
Exemplo de material jornalístico produzido pelo jornal “O Globo” sobre o Cartola

Outro ponto percebido na análise das plataformas informacionais é uma subversão da lógica presente na cobertura esportiva. O conteúdo jornalístico elaborado dá destaque para o torcedor participante do jogo – o Cartoleiro. Isso se dá uma vez após cada rodada, quando a editoria responsável pelo Cartola produz reportagens especiais com o usuário com a maior pontuação na liga PRO (Figura 4), a versão paga do jogo. Este material, geralmente, contempla a história do torcedor com o game; suas estratégias para “mitar”, ou seja, pontuar bem durante as rodadas etc. Por outro lado, os jogadores que, de forma mais comum, são os destaques nas coberturas esportivas tornam-se meros “personagens” que são trocados a cada rodada e valorados apenas por seu valor em “cartoletas” e sua pontuação no jogo.

Figura 4
No material jornalístico sobre o Cartola, o personagem é o torcedor que se destaca durante cada rodada

Plataforma Transmídia de Interação

Esse operador possibilita o engajamento entre os produtores de conteúdo e a audiência/usuários do Cartola e utiliza as redes sociais digitais oficiais do jogo. Nesta pesquisa, o Twitter e o aplicativo oficial ganham destaque; além das inserções de conteúdo sobre o game nos programas televisivos do Grupo Globo.

O aplicativo oficial permite a interação do usuário com outras plataformas e usuários. A partir dele, é possível o acesso ao portal oficial, às matérias jornalísticas, às dicas de como escalar melhor as equipes na disputa, e à criação de competições entre usuários. Aliado a isso, todas as informações presentes no website oficial possuem abas que permitem o acesso dos usuários pelo aplicativo. Menos uma, exclusiva para o aplicativo, que é a “Central da Zoeira” – uma série de stickers exclusivos para WhatsApp, preparados para os usuários interagirem com seus amigos (Figura 5).

Figura 5
Central da Zoeira estimula que torcedores interajam entre si por plataformas diversas

O Twitter oficial do Cartola estimula o engajamento com a audiência do game com três tipos de mensagens: interação, compartilhamento e entretenimento. Os convites à participação ou interação podem ser conceituados como o estímulo à prática do processo comunicacional de forma ativa, trazendo à tona opiniões e divergências sobre dado conteúdo em diversas plataformas (FERNANDES VIANA, 2018FERNANDES VIANA, P. M. Publicidade que entretém: a circulação transbordada de conteúdos de marca. Curitiba: Editora Appris, 2018.; COVALESKI, 2010COVALESKI, R. Publicidade híbrida. Curitiba: Max Editora, 2010.). A ideia do compartilhamento está relacionada à “alta probabilidade de recomendação, espontaneidade do receptor em partilhar conteúdos ouvidos a partir de uma experiência positiva empreendida” (COVALESKI, 2013COVALESKI, R. Idiossincrasias publicitárias. Curitiba: Max Editora, 2013., p. 25). O entretenimento está relacionado a atividades elaboradas para preencher momentos ociosos (FERNANDES VIANA, 2018FERNANDES VIANA, P. M. Publicidade que entretém: a circulação transbordada de conteúdos de marca. Curitiba: Editora Appris, 2018.).

Os três tipos de conteúdo são utilizados com postagens muito semelhantes em suas lógicas. Para estimular a interação, os perfis oficiais do game costumam sempre perguntar aos usuários se estes foram bem na rodada (Figura 6), quantos pontos fizeram, se “mitaram” etc. O entretenimento é, basicamente, realizado por meio das postagens de vários memes relacionados ao futebol (Figura 7), aspectos da cultura contemporânea e fatos recentes relevantes ou curiosos. Aliado a isso, os perfis digitais do jogo também costumam compartilhar os conteúdos produzidos para as outras plataformas, como as dicas, os próprios memes e reportagens sobre o Cartola.

Figura 6
Convite à participação é bastante utilizado nas redes sociais digitais do Cartola
Figura 7
O entretenimento por meio de memes é uma das estratégias de interação propostas pelo Cartola

Há uma tentativa de interação com os usuários, uma vez que todos os programas esportivos presentes no Grupo Globo (Figura 8), sejam eles na emissora principal – a Globo –, ou no canal pago SporTV, possuem equipes e/ou ligas dos próprios programas no Cartola. É uma estratégia comum para que, durante essas atrações, haja o debate sobre o rendimento dessas equipes rodada a rodada. Geralmente, essa ação é liderada pelo apresentador, que estimula a interação com os telespectadores via as redes sociais digitais. Outra tentativa de engajamento indireto por meio televisivo é a utilização de personalidades televisivas do Grupo Globo em outras plataformas oficiais do Cartola, como é o caso da seção “Tirando da Cartola”, veiculada nas redes sociais digitais oficiais do jogo para dar dicas para os usuários a cada rodada.

Figura 8
Ana Thaís Matos e Gustavo Villani comentam desempenho da equipe do programa “Segue o Jogo” após uma rodada

Plataforma Transmídia de Marketing

O engajamento proposto pelo Cartola é aproveitado por outras marcas parceiras do Grupo Globo para a elaboração de ações de marketing. Não há plataformas específicas de marketing no Cartola, mas, sim, o aproveitamento de plataformas e estratégias de engajamento já utilizadas. A primeira forma de engajamento por meio do marketing no game é a própria modalidade paga do jogo, o Cartola PRO, que oferece uma série de benefícios dentro e fora do jogo como vantagens para quem se associar. Essas vantagens podem chegar inclusive a premiações em dinheiro, alcançando o valor máximo de R$ 10 mil; carros 0 km da marca Chevrolet, montadora parceira do jogo etc.

Outro exemplo dessa utilização é o personagem Cartolouco. Foi criado em 2016 pelo jornalista Lucas Strabko – à época, estagiário da editoria de esportes da Rede Globo. No mesmo ano, Lucas passou a apresentar o quadro “Cartoloucos”, um especial produzido para o GloboEsporte.com e transmitido na TV aos sábados durante o Globo Esporte e no domingo pelo Esporte Espetacular. A partir de então, o personagem ganhou espaço nas transmissões esportivas do Grupo Globo devido à sua irreverência ao falar de futebol e, obviamente, do Cartola, até ser demitido6 6 Folha de S.Paulo. Globo demitiu Cartolouco por jornalista exceder em brincadeiras; foto na privada foi gota d’água. Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2020/04/globo-demitiu-cartolouco-por-jornalista-exceder-em-brincadeiras-foto-na-privada-foi-gota-dagua.shtml. Acesso em: 22/06/2022. pela emissora em 2020. Além de personagem criado, o Cartolouco era considerado como uma ferramenta de interação do Cartola nos eventos in loco, uma vez que sua presença gerava novas interações e formas de engajamento. Era comum que, durante partidas nas quais o personagem comparecia, torcidas entoassem cantos referentes ao jogo Cartola e, obviamente, em homenagem ao personagem. Essa estratégia, por outro lado, também apresentava riscos, dado que o personagem chegou a sofrer agressões de torcidas7 7 Istoe.com. Torcida do Flu tenta agredir apresentador do SporTV. Disponível em: https://istoe.com.br/video-torcida-do-fluminense-tenta-agredir-apresentador-do-sportv. Acesso em: 1 jun. 2019. por causa de interações e comentários feitos durante encontros com torcidas rivais, por exemplo. Aliado a isso, o Cartolouco também foi utilizado como ferramenta de promoção de marcas parceiras do jogo, como quando compareceu a um jogo do Flamengo e foi deliberadamente “flagrado” com um cartaz na arquibancada convocando o narrador da partida, Luís Roberto Demúcio, a fazer o download do Ifood (Figura 9), aplicativo de delivery de alimentos e parceiro comercial do Grupo Globo.

Figura 9
“Cartolouco” como ferramenta de interação do Cartola com a audiência e marcas parceiras

Plataforma de Práticas Transmídia

Já as PPT são aquelas que dão acesso a informações sobre o Cartola elaboradas por usuários e/ou torcedores. Foram encontrados conteúdos produzidos por esse público em todos os formatos possíveis, como blogs, websites, materiais audiovisuais e perfis em redes sociais digitais. O material produzido também não difere muito da lógica utilizada na produção oficial de conteúdo do Grupo Globo. O conteúdo prima pela elaboração de dicas e tutoriais sobre o jogo, além de conteúdo humorístico envolvendo o futebol.

Vimieiro (2018)VIMIEIRO, A. C. The digital productivity of football supporters. Convergence: The International Journal of Research into New Media Technologies, v. 24, n. 4, p. 374-390, 2018. ressalta que a Web 2.0 permite o crescimento da cultura de produção de conteúdo por torcedores. Grande parte desse conteúdo é formado por blogs que, por outro lado, são considerados, inicialmente, trabalhos inferiores, uma vez que vários desses blogueiros não vão a campo durante as partidas, nem participam de entrevistas coletivas ou têm acesso privilegiado aos clubes, o que acarreta muitas vezes em conteúdos não originais. Aliado a isso, há um fator técnico que é a ausência da formação jornalística por parte desses torcedores. Vimieiro (2018)VIMIEIRO, A. C. The digital productivity of football supporters. Convergence: The International Journal of Research into New Media Technologies, v. 24, n. 4, p. 374-390, 2018. também aponta que torcedores vêm produzindo uma gama de conteúdos digitais, como podcasts, coberturas das partidas ao vivo, flogs, vlogs e outros tipos de produções audiovisuais. Assim como no material oficial do Cartola, as quatro formas de escrita que Rowe (1992)ROWE, D. Modes of sports writing. In: DAHLGREN, P.; SPARKS, C. (ed.). Journalism and popular culture. London: SAGE, 1992. p. 96-112. aponta – hard news, soft news, retórica ortodoxa e análises reflexivas – também podem ser encontradas no conteúdo produzido por torcedores.

Percebeu-se também que não são apenas os torcedores que se apropriaram da prática transmídia referente ao Cartola. Outras empresas de comunicação passaram a produzir material sobre o tema, como é o caso da Gazeta do Povo, empresa de comunicação centenária do estado do Paraná. O veículo criou uma rede de interação a partir do game fantasy que possuía entradas no portal do jornal Gazeta do Povo, além das redes sociais digitais –um canal no YouTube, com mais de 167 mil seguidores, um perfil no Twitter, com quase seis mil seguidores, um perfil no Instagram, com mais de 70 mil seguidores, e mais de 30 grupos em redes de trocas de mensagens, como o WhatsApp e o Telegram à época da coleta de material para análise do fantasy game.

Considerações finais

O Cartola representa um marco nas interações entre torcedores brasileiros, marcas e o Campeonato Brasileiro de Futebol por intensificar relações que já eram comuns nas interações entre o esporte, a mídia e seu público. Por meio da análise de suas estratégias e práticas transmidiáticas, pode-se perceber como o jogo auxilia no processo de alteração de algumas lógicas então vigentes nos processos de comunicação e interação no esporte, mais especificamente no futebol.

Uma dessas estratégias é justamente a maior valorização do torcedor como personagem. Ao produzir conteúdo que valoriza a figura de sua audiência, como é o caso, dos torcedores que “mitam” em seus desempenhos no Cartola, o jogo reafirma a importância de seus aficionados e, até certo ponto, traz limites à superexposição dos atletas, que neste contexto são tratados como meras ferramentas da mecânica do jogo. O game coloca em destaque em suas narrativas, figuras que normalmente jamais estariam em foco, além de tornar a própria narrativa mais interessante para outros torcedores, uma vez que eles próprios podem vir a se tornar o foco do material produzido. Essa subversão da lógica comunicacional vigente possui duas vertentes, uma mais institucionalizada, proveniente dos veículos Globo, e a outra não.

Nos conteúdos produzidos institucionalmente pelo Cartola, há o destaque para o torcedor. Primeiramente, porém, este torcedor deve se submeter a uma lógica tradicional, que é a de se destacar no jogo para virar um personagem, que também se submete a critérios institucionais e organizacionais, como os critérios jornalísticos de produção do Grupo Globo.

O segundo não é institucionalizado ou liderado por alguma organização. O torcedor também assume uma nova função, que é a de especialista e produtor de conteúdo. Além de ganhar mais visibilidade como personagem na mídia convencional, devido ao seu desempenho no game, o torcedor ganha importância no contexto de promover interações e a circulação de conteúdo sobre o Cartola. Dessa forma, vê-se livre para produzir seu próprio conteúdo sobre o jogo em vários formatos, mas sem se submeter necessariamente a critérios ou formalidades jornalísticas, por exemplo, produzindo de forma mais fluida e menos/não convencional.

Aliado a isso, apresenta-se também uma alteração no consumo do produto futebol, já que muitos torcedores passam não mais a acompanhar apenas os jogos de seus clubes do coração, mas um número maior de partidas, justamente para acompanhar a performance dos atletas que fazem parte da equipe escalada por eles. Ou até mesmo leva torcedores a desejarem que seu clube de coração não obtenha bons resultados8 8 EL PAÍS. Como o Cartola FC instituiu uma nova forma de torcer no Brasileirão. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/04/18/deportes/1524084554_778460.html. Acesso em: 1 jun. 2019. , em detrimento de um bom resultado pessoal no Cartola.

Essa alteração nas práticas do torcer no Campeonato Brasileiro de Futebol trouxe também alterações organizacionais nas principais marcas envolvidas neste processo, como o próprio evento, o Brasileirão, e sua a principal parceira organizacional, o Grupo Globo. Se o interesse por parte dos torcedores passa a ser maior e valoriza o evento, uma vez que eles tendem a acompanhar mais jogos, o campeonato tende a se valorizar como marca. Já a organização detentora dos direitos de transmissão, tende a se beneficiar da maior ânsia dos competidores por atualizações a respeito de times e jogadores. Isso gera além de um interesse comunicacional, interesse mercadológico refletido no patrocínio de empresas como Chevrolet, Itaú, Casas Bahia e Ambev – as empresas patrocinadoras na temporada 2019.

Entretanto, como já dito anteriormente, a nova função assumida pelos torcedores – a produção de conteúdo – também é um desafio para a transmissão oficial, porque se antes a concorrência estava restrita a outros meios de comunicação, hoje, com a presença de novos atores, há uma realidade distinta, uma vez que a concorrência provoca novas posturas por parte das empresas de comunicação e seus parceiros técnicos e comerciais.

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Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Asistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2019
  • Aceito
    09 Jun 2022
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