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É perigoso: a glorificação do risco na mídia e as atitudes dos jovens em relação à direção no trânsito

Es peligroso: la glorificación del riesgo en los medios y las actitudes de los jóvenes con relación a la conducción en el tráfico

Resumo

Este artigo analisa efeitos de mídia de curto prazo de anúncios de carros na TV que glorificam o risco, e associações de longo prazo, como o uso de videogames violentos, sobre as atitudes dos jovens em relação à experiência de dirigir. O estudo, que utiliza metodologia experimental com desenho entressujeitos, teve a participação de 106 estudantes de graduação da Universidade de Brasília (UnB) e ocorreu durante o primeiro semestre de 2019. Os resultados mostram que os efeitos de curto prazo da exposição a anúncios de carros na TV que glorificam o risco aumentam significativamente as atitudes de risco em relação para dirigir, medido pela Driver Thrill Seeking Scale (DTSS). Entretanto, isso ocorreu apenas entre indivíduos que gostam de videogames violentos como Grand Theft Auto (GTA). Não foram encontrados efeitos a curto prazo entre os outros participantes, o que não exclui a existência de outros tipos de efeito, como os de longo prazo.

Palavras-chave
Glorificação do risco; Anúncios de carro na TV; Videogames; Segurança no trânsito; Driver Thrill Seeking Scale

Resumen

Este artículo analiza los efectos mediáticos a corto plazo de los anuncios de automóviles en la televisión que glorifican el peligro, y las asociaciones a largo plazo, como el uso de videojuegos violentos, sobre las actitudes de los jóvenes con relación a la experiencia de conducir. El estudio que utiliza una metodología experimental con dibujos entre sujetos, tuvo la participación de 106 estudiantes universitarios de la Universidad de Brasilia (UnB) ocurrió durante el primer semestre de 2019. Los resultados muestran que los efectos a corto plazo de la exposición a anuncios de automóviles en la Televisión que glorifican el peligro aumentan significativamente las actitudes de riesgo al conducir, medido por la Driver Thrill Seeking Scale (DTSS). Sin embargo, eso sólo ocurrió entre individuos que les gustan a los videojuegos violentos como Grand Theft Auto (GTA). No han sido encontrados efectos a corto plazo entre los otros participantes, lo que no excluye la existencia de otros tipos de efecto, como los a largo plazo.

Palabras clave
Glorificación del riesgo; Anuncios de automóviles en la televisión; Videojuegos; Seguridad de trafico; Driver Thrill Seeking Scale

Abstract

This article analyzes short-term media effects of car commercials on TV that glorify risk, and long-term associations, such as the use of violent videogames, on the attitudes of young people towards driving experience. The study, a between-subjects experimental design, included 106 undergraduate students from the Universidade de Brasília (University of Brasília, UnB) during the first semester of 2019. The results show that the short-term effects of exposure to car commercials on TV that glorify risk significantly increase risky attitudes in relation to driving, measured by the Driver Thrill Seeking Scale (DTSS). But this only occurs among individuals who like violent videogames such as Grand Theft Auto (GTA). No short-term effects were found among the other participants, which does not exclude the existence of other types of effect, such as long-term ones.

Keywords
Glorification of risk; Car commercials on TV; Video games; Traffic safety; Driver Thrill Seeking Scale

Introdução

Este trabalho tem como objetivo medir efeitos de curto prazo da exposição de jovens a propagandas de carro na TV que glorificam o risco sobre suas atitudes em relação à experiência de dirigir um automóvel. Mais especificamente, o estudo replica no Brasil a pesquisa de Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015., realizada com estudantes universitários canadenses, na qual não foram identificados efeitos de curto prazo de um anúncio de carro na TV – em condições de condução perigosa – sobre diferentes medidas atitudinais e comportamentais associadas à experiência no trânsito. No entanto, se não foram encontrados efeitos de curto prazo nas atitudes de risco ao dirigir entre os jovens em geral, os comerciais de televisão que glorificam o risco no trânsito têm efeitos de curto prazo em subpopulações específicas, como indivíduos que gostam de usar videogames violentos?

Esta replicação, contudo, busca expandir a pesquisa na área em dois aspectos. Em primeiro lugar, investiga a existência de efeitos de curto prazo de anúncios de TV sobre subpopulações mais suscetíveis a comportamentos de risco no trânsito. Em segundo lugar, procura refinar a análise da Driver Thrill Seeking Scale (DTSS), propondo a existência de dois fatores distintos associados a ela: um mais genérico ligado à emoção de dirigir e outro, mais específico e perigoso, vinculado ao risco de vida.

Os acidentes de transporte terrestre no Brasil causam, a cada ano, cerca de 170 mil internações no Sistema Único de Saúde (SUS) e 43 mil mortes, sobretudo da população mais jovem (CARVALHO, 2016CARVALHO, C. H. R. Mortes por Acidentes de Transporte Terrestre no Brasil: Análise dos Sistemas de Informação do Ministério da Saúde. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, n. 2212. Rio de Janeiro: [s.n.], 2016.). A mortalidade no trânsito brasileiro – de cerca de 20 casos anuais a cada 100 mil habitantes – é ao menos o dobro da encontrada na maioria dos países da Europa (CARVALHO, 2016CARVALHO, C. H. R. Mortes por Acidentes de Transporte Terrestre no Brasil: Análise dos Sistemas de Informação do Ministério da Saúde. IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, n. 2212. Rio de Janeiro: [s.n.], 2016.; OMS, 2018ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, OMS. Road traffic injuries. 2018. 7 dez. 2018. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/road-traffic-injuries. Acesso em: 29 jun. 2022.
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), assim como no Canadá e nos Estados Unidos. Mas entre os jovens, indivíduos de 20 a 29 anos, a mortalidade no trânsito chega a ser o triplo da observada para a média da população europeia, o que justifica em termos morais e sociais estudos que possam contribuir para o esclarecimento de determinantes e fatores associados a esse problema.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2018ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, OMS. Road traffic injuries. 2018. 7 dez. 2018. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/road-traffic-injuries. Acesso em: 29 jun. 2022.
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), são diversas as causas da mortalidade no trânsito, que chega a matar 1,4 milhão de pessoas no mundo a cada ano. Mas entre as oito mais importantes, quatro têm caráter individual e comportamental, portanto, potencialmente suscetíveis à influência do entorno social, inclusive midiático: alta velocidade, condução sob efeito de álcool ou outras substâncias psicoativas, não uso de equipamentos de segurança e condução desatenta, como a decorrente do uso do telefone celular (WHO, 2018ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, OMS. Road traffic injuries. 2018. 7 dez. 2018. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/road-traffic-injuries. Acesso em: 29 jun. 2022.
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)1 1 Os outros quatro são contextuais: falta de segurança rodoviária, falta de segurança dos veículos, tratamento médico inadequado após um acidente e leis e aplicação de regras inadequadas. .

Ainda que sejam diversas e complexas as razões pelas quais os indivíduos assumem comportamentos de risco no trânsito, há motivos para considerar que um de seus fatores determinantes seja a exposição dos indivíduos ao conteúdo midiático. Em primeiro lugar, porque a narrativa publicitária da indústria automotiva em diversos países, entre eles o Brasil, tem estimulado, em algum grau, atitudes e comportamentos de risco. Shin et al. (2005)SHIN, P. C.; HALLETT, D.; CHIPMAN, M. L.; TATOR, C.; GRANTON, J. T. Unsafe driving in North American automobile commercials. Journal of Public Health, v. 27, n. 4, p. 318-325, 2005. identificaram que, entre os anúncios de carro exibidos nos Estados Unidos e no Canadá entre 1998 e 2002, 45% tinham alguma sequência de imagens de direção perigosa. Não há dados comparáveis para o Brasil, mas, em linha com códigos voluntários adotados na Austrália, na Nova Zelândia, no Canadá e no Reino Unido, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária condena, em seu artigo 33, anúncios que, entre outras informações, “manifestem descaso pela segurança” e “estimulem o uso perigoso do produto oferecido”2 2 O mesmo código, no Anexo O (dedicado a anúncios sobre veículos motorizados), proíbe “sugestões de utilização de veículo que possam pôr em risco a segurança pessoal do usuário e de terceiros, tais como ultrapassagens não permitidas em estradas e excesso de velocidade”. Além disso, desde 2009, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503) diz em seu artigo 77-B que “toda peça publicitária destinada à divulgação ou promoção, nos meios de comunicação social, de produto oriundo da indústria automobilística ou afim, incluirá, obrigatoriamente, mensagem educativa de trânsito a ser conjuntamente veiculada”. . Ainda assim, é comum identificar estímulos a comportamento de risco na publicidade de automóveis, com sequências de aceleração rápida, ultrapassagens e manobras perigosas (MENEGUIN, 2016MENEGUIN, A. M. P. L. Entre o acelerador e o freio: o motorista no discurso publicitário. Intercom, Rev. Bras. Ciênc. Comun. v. 39, n. 1, p. 111-138, 2016.).

A literatura científica tende a apoiar essas preocupações regulatórias ou autorregulatórias. Uma revisão sistemática com metanálise conduzida por Fischer et al. (2011)FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; KASTENMÜLLER, A.; VOGRINCIC, C.; SAUER, A. The effects of risk-glorifying media exposure on risk-positive cognitions, emotions, and behaviors: a meta-analytic review. Psychological Bulletin, v. 137, n. 3, p. 367-390, 2011., por exemplo, concluiu que a exposição a conteúdos que glorificam comportamentos de risco aumenta a ocorrência de inclinações individuais a reproduzir esses comportamentos de risco e de emoções e atitudes associadas ao risco, inclusive no trânsito. Conclusões semelhantes se extraem de estudos relatados em Fischer et al. (2007FISCHER, P.; KUBITZKI, J.; GUTER, S.; & FREY, D. Virtual driving and risk taking: Do racing games increase risk taking cognitions, affect, and behaviors? Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 13, p. 22-31, 2007., 2009)FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; MORTON, T.; KASTENMÜLLER, A.; POSTMES, T.; FREY, D.; KUBITZKI, J.; ODENWÄLDER, J. The racing-game effect: why do video racing games increase risk-taking inclinations? Personality and Social Psychology Bulletin, v. 35, n. 10, p. 1395-1409, 2009., Hull, Draghici e Sargent (2012)HULL, J. G., DRAGHICI, A.M., SARGENT, J.D. A longitudinal study of risk-glorifying video games and reckless driving. Psychol. Popul. Media Cult. v. 1, p. 244–253, 2012., Busching, Allen e Anderson (2015)BUSCHING, R.; ALLEN, J. J.; & ANDERSON, C. A. Violent media contents and effects. In: NUSSBAUM, J. F. (ed.). Oxford Research Encyclopedia of Communication. New York: Oxford University. 2015. e Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015., entre outros.

O presente trabalho insere-se, portanto, nessa agenda de pesquisa, dedicada a identificar associações e relações causais entre o conteúdo midiático e comportamentos de risco no trânsito, mais especificamente entre jovens, vítimas principais de acidentes fatais de transporte. O estudo está dividido em cinco seções, que apresentam o marco teórico de referência desta pesquisa e as hipóteses de trabalho; descrevem a metodologia utilizada; discutem os resultados obtidos; apontam limitações deste estudo e sugerem tópicos para trabalhos futuros; e, por fim, resumem as conclusões do artigo3 3 Este trabalho não se ocupa, contudo, de questões relativas ao processo psicológico que resulta da exposição a conteúdo que glorifica o risco e antecede atitudes ou comportamentos de risco no trânsito. Estudos sobre esse objeto podem ser encontrados em Fischer et al. (2009, 2012), Greitemeyer e Osswald (2010). O âmbito deste estudo de Comunicação, portanto, articula apenas a exposição a conteúdo midiático e atitudes relacionadas à experiência de dirigir. .

Revisão da Literatura

O General Aggression Model (GAM), proposto por Anderson e Bushman (2002)ANDERSON, C.; BUSHMAN, B. J. Human Aggression (The GAM theory). Annual Review of Psychology, v. 53, n. 1, p. 27-51, 2002. e discutido por Fischer et al. (2009)FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; MORTON, T.; KASTENMÜLLER, A.; POSTMES, T.; FREY, D.; KUBITZKI, J.; ODENWÄLDER, J. The racing-game effect: why do video racing games increase risk-taking inclinations? Personality and Social Psychology Bulletin, v. 35, n. 10, p. 1395-1409, 2009., entre outros, presume que estímulos midiáticos de curto prazo podem funcionar como gatilhos que tornam mais evidentes e disponíveis ideias e cognições associadas a comportamentos de risco, em indivíduos cujo processo de socialização estimulou o uso de violência. Em outras palavras, as representações na mídia com conteúdo violento poderiam afetar a agressividade ao estimularem pensamentos agressivos, emoções e atitudes, o que aumentaria a prontidão de um indivíduo para agir agressivamente em contextos do mundo real (FISCHER et al., 2009FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; MORTON, T.; KASTENMÜLLER, A.; POSTMES, T.; FREY, D.; KUBITZKI, J.; ODENWÄLDER, J. The racing-game effect: why do video racing games increase risk-taking inclinations? Personality and Social Psychology Bulletin, v. 35, n. 10, p. 1395-1409, 2009.). Ou seja, a exposição episódica a conteúdo midiático que glorifica o risco não teria a capacidade de – per se – fixar atitudes e comportamentos de risco, mas reforçaria inclinações pré-existentes, socialmente construídas, inclusive pelo conteúdo da mídia.

De fato, Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015. não identificaram nenhum efeito da exposição de jovens estudantes universitários canadenses a um anúncio de carro na TV que exibia sequências de imagens com direção perigosa, sobre os resultados atitudinais e comportamentais em três estratégias de mensuração (DTSS, Implicit Attitude Task e Vienna Risk-Taking Test - Traffic). Os autores argumentam que, por terem um formato de mídia de consumo passivo, anúncios de carro que exibem cenas de risco não criaram condições para o envolvimento ativo dos espectadores e, portanto, têm nulo ou limitado efeito sobre resultados associados ao risco, ainda que não descartem seus efeitos de longo prazo. Entretanto, o fato de não haver efeito de curto prazo sobre jovens em geral não descarta a possibilidade de que exista algum efeito de curto prazo sobre segmentos populacionais específicos. Afinal, alguns subgrupos podem ser mais suscetíveis a atitudes de risco sob estímulos de curto prazo, como usuários de videogames que estimulam a violação de regras no trânsito (por exemplo, Grand Theft Auto, Need for Speed ou Burnout). Estudo de Vingilis et al. (2013)VINGILIS, E.; SEELEY, J.; WIESENTHAL, D. L.; WICKENS, C. M.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Street racing video games and risk-taking driving: An Internet survey of automobile enthusiasts. Accident Analysis and Prevention, v. 50, p. 1-7, 2013. com membros de clubes de automóveis no Canadá mostrou, por exemplo, uma associação positiva entre o uso desses videogames violentos e um comportamento de risco no trânsito.

Esse achado está em linha com o de outras 88 pesquisas relacionadas aos efeitos da exposição a conteúdo midiático que glorifica o risco, analisadas por Fischer et al. (2011)FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; KASTENMÜLLER, A.; VOGRINCIC, C.; SAUER, A. The effects of risk-glorifying media exposure on risk-positive cognitions, emotions, and behaviors: a meta-analytic review. Psychological Bulletin, v. 137, n. 3, p. 367-390, 2011., que notaram que a influência do conteúdo midiático em condições de exposição ativa (como videogames) é maior que em situações de exposição passiva (como nos anúncios de TV). Ainda que existam fortes evidências de que a exposição a videogames que estimulam o risco esteja associada a comportamentos de risco no trânsito, a duração de seu efeito é menos clara (VORDERER; KLIMMT, 2006 apud FISCHER et al., 2009FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; MORTON, T.; KASTENMÜLLER, A.; POSTMES, T.; FREY, D.; KUBITZKI, J.; ODENWÄLDER, J. The racing-game effect: why do video racing games increase risk-taking inclinations? Personality and Social Psychology Bulletin, v. 35, n. 10, p. 1395-1409, 2009.), do mesmo modo que a existência de resultados interativos entre seu uso e a exposição de curto prazo a conteúdos televisivos que glorificam o risco é desconhecida. Se não produzem efeitos de curto prazo sobre atitudes de risco ao dirigir entre jovens em geral, anúncios de TV que glorificam o risco no trânsito têm efeitos de curto prazo sobre indivíduos que gostam de usar videogames violentos?

Com base na literatura indicada, seria esperável observar, de fato, que anúncios de TV produzissem efeitos de curto prazo sobre indivíduos cujo processo de socialização criou uma pré-disposição a comportamentos de risco. Portanto, a hipótese central deste estudo é de que (H1) a exposição a conteúdo midiático passivo (anúncios de carro na TV) que glorifica o risco aumenta atitudes de risco no trânsito entre indivíduos que se expõem a conteúdo midiático ativo (videogames) que glorifica o risco. Em concordância com Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015., espera-se que (H2) a exposição a conteúdo midiático passivo (anúncios de carro na TV que glorificam o risco) não tenha efeito direto sobre atitudes de risco dos jovens em geral. E, com base em Fischer et al. (2009)FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; MORTON, T.; KASTENMÜLLER, A.; POSTMES, T.; FREY, D.; KUBITZKI, J.; ODENWÄLDER, J. The racing-game effect: why do video racing games increase risk-taking inclinations? Personality and Social Psychology Bulletin, v. 35, n. 10, p. 1395-1409, 2009. e em Vingilis et al. (2013)VINGILIS, E.; SEELEY, J.; WIESENTHAL, D. L.; WICKENS, C. M.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Street racing video games and risk-taking driving: An Internet survey of automobile enthusiasts. Accident Analysis and Prevention, v. 50, p. 1-7, 2013., espera-se que (H3) a exposição a conteúdo midiático ativo (videogames violentos que glorificam o risco) esteja associada a atitudes de risco no trânsito.

Metodologia

Participantes

O estudo foi aplicado durante o primeiro semestre de 2019 a 214 estudantes de graduação em cursos de Comunicação Social e Estatística da Universidade de Brasília (UnB), que participaram da pesquisa em troca de créditos ou como controle de presença em atividades das disciplinas nas quais estavam matriculados. Ao todo, estudantes de sete disciplinas estiveram presentes nas quatro rodadas de coleta de dados: 78 indivíduos no dia 21 de março, 63 no dia 22 de março, 42 no dia 29 de abril e 31 no dia 17 de junho. O número de participantes incluídos na análise final dos dados, contudo, foi de 106 indivíduos (49,5% do total). Isso deveu-se à exclusão de seis estudantes com idades superiores a 29 anos (mantendo o escopo do estudo circunscrito aos jovens), de oito que não passaram na checagem de atenção, de um que não passou na checagem de manipulação, e de 93 que não responderam a toda a bateria de questões sobre atitudes relacionadas à experiência de dirigir, seja porque consideraram a situação muito remota ou porque não costumam dirigir, ainda que tenham carteira de habilitação. Neste estudo, preferiu-se não utilizar filtro no recrutamento dos participantes para evitar efeitos de demanda, o que resultou no alto número de participantes que não completaram o questionário no bloco de perguntas de interesse desta pesquisa. As três condições experimentais consideradas na análise, portanto, tinham as seguintes características: grupo controle (n=29, 51,7% homens, média de idade de 20,6 anos [σ=2,7 anos]), grupo anúncio de carro sem risco (n=45, 44,4% homens, média de idade de 21,6 anos [σ=2,8 anos]) e o grupo anúncio de carro com risco (n=32, 50,0% homens, média de idade de 20,2 anos [σ=2,5 anos]). Testes ANOVA e qui-quadrado mostraram que os grupos estavam balanceados quanto à idade e ao gênero.

Estímulo

Um survey piloto realizado em abril de 2018 avaliou o interesse de uma amostra de conveniência formada por 37 estudantes da UnB em assistir a cinco programas de humor da TV aberta no Brasil dirigidos a famílias, ou seja, com classificação indicativa livre e com temas cotidianos e domésticos4 4 Nos estudos de Vingilis et al. (2015), a série Modern Family foi utilizada. . Foram avaliados os programas “Chaves”, “Sai de Baixo”, “Grande Família”, “Vai que Cola” e “Tá no Ar: a TV na TV”. A produção mexicana “Chaves” (El Chavo del Ocho, no original), exibida pela emissora SBT desde 1984, era a única conhecida por todos os respondentes do teste piloto e a preferida dentre elas, com 43,2% de indicações em resposta única.

Por esse motivo, foi escolhido um episódio de “Chaves” para a criação do contexto midiático experimental. O vídeo tinha duração total de 29’34’’, com três intervalos para propaganda e cada um deles contava com cinco anúncios de conteúdos diversos. Para criar três versões do episódio, um único elemento foi manipulado. Seguindo o procedimento adotado em Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015., os grupos tratados tiveram um anúncio de carro introduzido em cada um dos intervalos comerciais e o grupo controle teve um anúncio de outro produto (telefonia celular) inserido na mesma posição. O anúncio de carro escolhido para a condição experimental sem risco foi o do Sportage 2018 da KIA, que exibia o automóvel em movimento lento, enfatizando seu design, sua tecnologia, a segurança para a família e o conforto interno. Já o anúncio selecionado para a condição experimental com risco foi o do Cronos 2018 da FIAT, que exibia o automóvel em alta velocidade, sob diferentes condições climáticas e com música mais animada, enfatizando seu caráter esportivo. O anúncio original da Kia tinha 30”, já no padrão para inserção em programa da TV aberta brasileira. O da FIAT, originalmente com 1’38”, foi reduzido para 30” de modo a eliminar os possíveis efeitos de durações diferentes dos vídeos. O anúncio de controle foi da empresa telefônica Oi e não tinha qualquer relação com carros ou com atividades de risco. Os anúncios de carro e o da empresa telefônica foram inseridos nos três intervalos, ocupando 5% do conteúdo total da exibição.

Controles

Três perguntas mensuraram a atenção dos participantes ao episódio de “Chaves” e serviram como variáveis proxy para avaliar o nível global de atenção dos indivíduos ao conteúdo apresentado. Cada uma das questões teve um nível alto de acerto: 94,9%, 75,7% e 96,3%. Nenhum participante errou as três respostas, mas foram eliminados oito participantes (3,7% do total) que acertaram apenas uma das três questões, demonstrando um nível baixo de atenção frente a perguntas que podem ser consideradas fáceis devido ao elevado índice de acerto. A maioria (70,6%) respondeu corretamente os três controles de atenção e 25,7% o fizeram para duas das três perguntas. O questionário também incluiu uma checagem de manipulação, que interrogava os participantes sobre tipos de produtos ou serviços anunciados nos intervalos comerciais. “Carro” era um dos 12 itens dessa lista. Apenas um indivíduo sorteado para uma das duas condições experimentais que incluía anúncio de automóvel não respondeu corretamente a essa questão e, por isso, foi excluído da análise.

Variável dependente

Uma questão teórico-empírica relevante neste campo de estudos é a seleção da variável dependente no desenho de pesquisa. Ainda que, sob a perspectiva do problema social, a variável mais relevante seja o comportamento dos indivíduos no trânsito, esse é um fenômeno de difícil observação científica, sobretudo em desenhos de pesquisa experimental, em que se privilegia o controle da mensuração. Alternativas comuns são o uso de simuladores (CAREY; MCDERMOTT; SARMA, 2013CAREY, R. N.; MCDERMOTT, D. T.; SARMA, K. M. The Impact of Threat Appeals on Fear Arousal and Driver Behavior: A Meta-Analysis of Experimental Research 1990-2011. PLoS ONE, v. 8, n. 5, 2013.), declarações de intenção de comportamento, ou a mensuração de emoções e atitudes (FISCHER et al., 2007FISCHER, P.; KUBITZKI, J.; GUTER, S.; & FREY, D. Virtual driving and risk taking: Do racing games increase risk taking cognitions, affect, and behaviors? Journal of Experimental Psychology: Applied, v. 13, p. 22-31, 2007.; FISCHER et al., 2009FISCHER, P.; GREITEMEYER, T.; MORTON, T.; KASTENMÜLLER, A.; POSTMES, T.; FREY, D.; KUBITZKI, J.; ODENWÄLDER, J. The racing-game effect: why do video racing games increase risk-taking inclinations? Personality and Social Psychology Bulletin, v. 35, n. 10, p. 1395-1409, 2009.; VINGILIS et al., 2015VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015.). Por simplicidade e replicabilidade, este estudo optou por analisar uma escala de atitudes, a DTSS, uma das medidas utilizadas por Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015..

Baseada em esforços para identificar padrões de comportamento no trânsito (DIGMAN, 1990DIGMAN, J. M. Personality structure: Emergence of the five-factor model. Annual Review of Psychology, v. 41, p. 417-440, 1990.; GLENDON et al., 1993GLENDON, A. I.; DORN, L.; MATTHEWS, G.; GULIAN, E.; DAVIES, D. R.; DEBNEY, L. M. (1993) Reliability of the Driver Behaviour Inventory. Ergonomics, v. 36, p. 719-726, 1993.), a DTSS foi proposta por Matthews et al. (1997)MATTHEWS, G.; DESMOND, P. A.; JOYNER, L.; CARCARY, B.; KIRBY, G. A comprehensive questionnaire measure of driver stress and affect. In: ROTHENGATTER, T.; VAYA, E.C. (Org.). Traffic and Transport Psychology: Theory and Application. Amsterdam: Pergamon, 1997. p. 317-324. e revista por Stradling, Meadows e Beatty (2004)STRADLING, S.; MEADOWS., M.; BEATTY, S. Characteristics of speeding, violating, and thrill-seeking drivers. In: ROTHENGATTER, T.; HUGUENIN, R. D. (ed.). Traffic and Transport Psychology: Theory and Application. Oxford: Elsevier Ltd, 2004. p. 177-192.. Essa medida utiliza uma escala Likert de sete pontos (VINGILIS et al., 2013VINGILIS, E.; SEELEY, J.; WIESENTHAL, D. L.; WICKENS, C. M.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Street racing video games and risk-taking driving: An Internet survey of automobile enthusiasts. Accident Analysis and Prevention, v. 50, p. 1-7, 2013.; VINGILIS et al., 2015VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015.) ou de 11 pontos (STRADLING; MEADOWS; BEATTY, 2004STRADLING, S.; MEADOWS., M.; BEATTY, S. Characteristics of speeding, violating, and thrill-seeking drivers. In: ROTHENGATTER, T.; HUGUENIN, R. D. (ed.). Traffic and Transport Psychology: Theory and Application. Oxford: Elsevier Ltd, 2004. p. 177-192.) para avaliar oito atitudes em relação ao comportamento no trânsito: “Eu gostaria de dirigir um carro esportivo em uma estrada sem limite de velocidade”; “Eu gosto da sensação de acelerar rapidamente”; “Eu gosto de escutar música animada com som alto quando dirijo”; “Eu gosto da emoção de dirigir rápido”; “Eu gosto de fazer curvas em alta velocidade”; “Eu gostaria de arriscar minha vida como piloto de automobilismo”; “Às vezes gosto de sentir algum medo quando dirijo”; e “Eu gosto de subir meu nível de adrenalina quando dirijo”. As respostas têm como polos de referência “discordo totalmente” e “concordo totalmente”.

Há diferentes formas de construir uma escala a partir desses dados. Stradling, Meadows e Beatty (2004)STRADLING, S.; MEADOWS., M.; BEATTY, S. Characteristics of speeding, violating, and thrill-seeking drivers. In: ROTHENGATTER, T.; HUGUENIN, R. D. (ed.). Traffic and Transport Psychology: Theory and Application. Oxford: Elsevier Ltd, 2004. p. 177-192. sugeriram a existência de um único fator após a realização de uma análise fatorial e informaram que a soma dos itens produz uma escala muito confiável, com Alpha=.91. Com base nos dados coletados neste estudo, entretanto, a mera soma dos itens não produz uma escala tão confiável, com Alpha=.78, e a análise fatorial não sugere a existência de um único fator, mas sim de dois fatores, ainda que o ajuste dos dados não seja o ideal (KMO=,762). Os dois fatores, entretanto, são teoricamente relevantes e estão associados a diferentes dimensões de uma experiência arriscada na condução de um automóvel. Um deles vincula-se a atitudes positivas em relação a comportamentos de risco (como fazer curvas em alta velocidade, arriscar a vida como piloto de automobilismo, sentir algum medo quando dirige e subir o nível de adrenalina). Já o outro fator aparece associado à atitudes positivas em relação a comportamentos que apenas aumentam a percepção de emoção sem que isso necessariamente implique risco (como dirigir um carro esportivo em uma estrada sem limite de velocidade, acelerar rapidamente, escutar música animada com som alto quando dirige e sentir a emoção de dirigir rapidamente).

Em vez de tomar uma única operacionalização da DTSS, a análise a seguir utiliza duas medidas possíveis da escala: uma que resulta da extração de um único fator e outra produzida pela extração de dois fatores. Os resultados, como se verá, revelam vantagens em analisar a DTSS com dois fatores. Em todas as versões da escala, os valores originais foram transformados para o intervalo 0-10, de modo a facilitar a comparação entre as três medidas.

Ao contrário dos achados de Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015., as mulheres registraram uma pontuação ligeiramente superior à dos homens em todas as medidas, embora essa diferença não tenha sido estatisticamente significativa nos testes de ANOVA. Também não foi encontrada correlação estatisticamente significativa entre essas medidas e a idade dos participantes, ainda que os coeficientes de Pearson (r) tenham sido todos negativos, em linha com a expectativa teórica que associa o passar dos anos de vida à redução de atitudes e comportamentos de risco.

A Tabela 1 mostra os dados descritivos dos itens que compõem a DTSS e descreve o peso de cada um deles nas três versões da variável dependente que serão analisadas a seguir. Os dados sugerem que a operacionalização da DTSS com dois fatores descreve melhor uma importante diferença entre atitudes associadas, por exemplo, a simplesmente dirigir ouvindo música animada com som alto e a arriscar a vida como piloto de automobilismo. No primeiro caso, a carga num único fator é de ,393, mas em dois fatores ela ora é de -,146 (ou seja, praticamente inexiste), ora é de expressivos ,733. No segundo caso, o perigo de morte tem peso ,507 num único fator, mas quando a DTSS é dividida em duas dimensões esse item ora tem peso de ,740, ora de irrelevantes -,032.

Tabela 1
Atitudes associadas à emoção de condução e duas medidas do DTSS

Procedimentos

Em cada uma das rodadas de coleta de dados, os participantes foram aleatoriamente sorteados para uma das três salas de aula em que foram exibidas, simultaneamente, cada uma das três versões do episódio de televisão, em um típico desenho entressujeitos. A exibição do conteúdo ocorreu sempre em salas de aula da Faculdade de Comunicação da UnB, que contavam com ampla projeção e caixas de som, com luzes ambientais apagadas, oferecendo um contexto adequado, sem distrações ou ruídos que impedissem a atenção ao episódio. Ao chegar às salas de aula, os estudantes eram informados sobre a duração do vídeo e o questionário que seria aplicado em seguida. Concluída a exibição, os participantes eram convidados a responder as questões em uma plataforma online utilizando seus celulares pessoais. Estudantes avançados de graduação, sob orientação do autor deste estudo, conduziram a exibição e a coleta dos dados, reduzindo assim efeitos de expectativa ou o efeito Hawthorne. O objetivo da pesquisa não foi informado ao final de cada rodada de coleta de dados (evitando uma comunicação indevida com potenciais participantes das rodadas seguintes), mas a equipe de pesquisadores ofereceu-se para apresentar os resultados da pesquisa quando estivesse concluída.

Resultados

Seguindo Green e Aronow (2011), a análise dos dados foi feita por meio de regressões lineares, uma vez que foram coletadas mais de 20 observações e, nesse caso, pode-se esperar que as estimações feitas não estejam enviesadas. A utilização de regressões lineares também traz como vantagem o aumento da precisão na mensuração dos efeitos estimados, já que os diferentes tratamentos estão acompanhados por covariáveis nos modelos.

A Tabela 2 resume os testes, indicando a direção e a significância estatística das variáveis nas três regressões lineares: uma para cada versão unidimensional da DTSS e duas para a versão bidimensional da DTSS. Todos os modelos incluem, além das variáveis que indicam as condições experimentais sob as quais estavam os participantes imediatamente antes de responderem aos questionários, duas variáveis sociodemográficas (idade e gênero) e uma variável dummy que informa se o participante declarou gostar do videogame Grand Theft Auto (GTA), que estimula a violência e glorifica o risco, especialmente no trânsito, não sendo recomendados para menores de 18 anos pela classificação indicativa do Ministério da Justiça do Brasil. Neste estudo, o estímulo midiático manipulado, portanto, foi a exposição a anúncios de veículos na TV e não a videogames violentos.

Tabela 2
Coeficientes não estandarizados de regressões lineares (erros-padrão entre parênteses)

A hipótese central deste estudo (H1), que esperava observar a existência de efeitos de curto prazo sobre indivíduos que gostam de videogames que glorificam o risco alcançou o nível de significância estatística (p-valor <.05) em dois dos três modelos, o que aponta para a existência de efeitos de curto prazo sobre anúncios de TV que glorificam o risco relacionado à experiência de dirigir. Esse efeito, contudo, não ocorreu entre jovens em geral que participaram do experimento, mas entre aqueles que gostam de videogames violentos como GTA. O resultado não reduz a importância desse efeito de curto prazo. Ao contrário, aumenta sua relevância, uma vez que o efeito ocorre justamente entre um grupo que tende a naturalizar mais a violência no trânsito.

Outro dado notável é que o coeficiente mais alto foi apurado na regressão que tinha como variável dependente a dimensão de risco da DTSS de dois fatores. Ou seja, não só anúncios de TV que glorificam o risco podem ter efeitos de curto prazo sobre jovens que utilizam videogames violentos, mas aparentemente não influenciam atitudes medidas pela dimensão de emoção da DTSS, mas sim as que pertencem à dimensão de risco.

Em consonância com os resultados obtidos por Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015., a mera exposição a anúncios de carro que estimulam o risco com imagens de aceleração ou alta velocidade em condições perigosas não parece produzir efeitos de curto prazo sobre as atitudes de jovens em geral em relação à experiência de conduzir perigosamente, reforçando a H2. Nem a exibição do anúncio do Cronos nem a do Sportage resultaram em coeficientes estatisticamente significativos.

Ao contrário do previsto em H3, contudo, não parece haver associação direta entre o fato de que os jovens tenham simpatia por GTA e seu nível na escala DTSS. Esse resultado foi consistente não só nos modelos que incluíam o termo interativo entre gostar de jogar GTA e a exposição de curto prazo ao anúncio de TV com risco, como também em outros modelos que não incluíram essa variável.

Entre as variáveis sociodemográficas, contra intuitivamente, os coeficientes de gênero (homem) foram todos negativos, ainda que sem relevância estatística. Já a idade teve sinal negativo em todos os modelos, sugerindo que com o passar dos anos a inclinação a correr riscos no trânsito diminui, mas aqui também os coeficientes não foram estatisticamente significativos em nenhum dos modelos, talvez devido ao estreito intervalo etário contemplado pela amostra (17-29 anos). Embora se espere que essas variáveis sejam balanceadas nas diferentes condições experimentais, elas foram introduzidas no modelo por razões teóricas, pois os comportamentos de risco geralmente estão associados ao sexo masculino e a indivíduos mais jovens.

Limitações

Se, por um lado, o desenho do estudo experimental aqui relatado traz resultados preocupantes sobre o efeito de curto prazo de narrativas de anúncios de TV que glorificam o risco na experiência de dirigir, por outro eles merecem ser interpretados dentro do marco empírico deste trabalho. Em primeiro lugar, os achados estão circunscritos à combinação específica entre o episódio do programa de TV escolhido, os anúncios manipulados e os demais anúncios que compunham o vídeo exibido. Ou seja, é possível que outros conteúdos equivalentes produzam efeitos maiores, menores ou até mesmo nenhum efeito. Novos estudos devem ser realizados para que seja possível estabelecer conclusões generalizáveis.

Em segundo lugar, o experimento realizado foi de tipo laboratorial, que tende a aumentar a atenção dos participantes ao conteúdo exibido e reduzir a validade externa do estudo. Portanto, é possível que em outros contextos – com menor atenção – os efeitos sejam menores ou inexistentes. Ainda assim, como se trata de estímulo que pode aumentar o risco de vida dos assistentes, a dúvida deve sugerir mais cautela e não o contrário.

O estudo também enfrenta limitações da amostra utilizada. Os estudantes universitários são geralmente diferentes da mesma população de idade. Embora possam ser vistos como um subgrupo de risco (pois são jovens e geralmente têm mais acesso a automóveis do que pessoas de baixa escolaridade na mesma idade), os estudantes universitários não representam todos os motoristas que podem ser afetados por anúncios de carros que glorificam o risco.

Outra limitação do estudo decorre da escolha de uma variável dependente que mede a atitude dos participantes, o que não necessariamente pode representar sua intenção de comportamento ou mesmo o próprio comportamento. Pesquisas futuras devem utilizar variáveis mais sutis, como testes de associação implícita, como o teste de Viena, para avaliar a extensão do efeito observado aqui.

Finalmente, cabe lembrar que este experimento procurou medir efeitos de curto prazo em um contexto laboratorial. Nesse sentido, é possível que os indivíduos tenham iniciado sua participação na pesquisa já “pré-tratados” (DRUCKMAN; LEEPER, 2012DRUCKMAN, J. N.; LEEPER, T. J. Learning More from Political Communication Experiments: Pretreatment and Its Effects. American Journal of Political Science, v. 56, n. 4, p. 875-896, 2012.). Ou seja, que o maior efeito já tenha ocorrido ao longo da vida dos participantes e que só seja possível medir um pequeno efeito residual dessa exposição de curto prazo. Além disso, mesmo a não identificação de qualquer efeito não permitiria aceitar a hipótese nula sem que se corresse o risco de cometer um Erro de Tipo II.

Outros desenhos de pesquisa, que exponham indivíduos por longos períodos a anúncios que glorificam o risco, poderiam oferecer melhores condições para identificar os efeitos cumulativos da exposição a esse conteúdo. Entretanto, desenhos de pesquisa dessa natureza levantam óbvias questões éticas. Um caminho mais promissor parece ser aprimorar a mensuração dos efeitos refinando o estudo da variável dependente e segmentando a audiência em busca de indivíduos mais propensos a comportamentos de risco.

Conclusão

A principal conclusão deste estudo é que a exposição de curto prazo a anúncios de carro na TV que glorificam o risco pode aumentar as atitudes de risco em relação à experiência de dirigir. Isso pode ocorrer, especificamente, com indivíduos que gostam de videogames violentos, cuja interação provavelmente se dá a longo prazo. Não foram encontrados efeitos de curto prazo para indivíduos que não gostam de jogos violentos como o GTA. Entretanto, isso não permite descartar a existência de efeitos de longo prazo.

Os resultados aqui relatados ampliam em dois aspectos o escopo da pesquisa sobre efeitos de curto prazo da exposição a anúncios de carro na TV que glorificam o risco. O primeiro deles sugere que parece existir, sim, um efeito de curto prazo dessa exposição sobre atitudes de risco no trânsito entre jovens que gostam de videogames violentos, o que apoia o previsto pelo GAM. O resultado obtido por Vingilis et al. (2015)VINGILIS, E.; ROSEBOROUGH, J. E. W.; WIESENTHAL, D. L.; VINGILIS-JAREMKO, L.; NUZZO, V.; FISCHER, P.; MANN, R. E. Experimental examination of the effects of televised motor vehicle commercials on risk-positive attitudes, emotions and risky driving inclinations. Accident Analysis and Prevention, v. 75, p. 86-92, 2015. deve, portanto, ser circunscrito a uma amostra geral de estudantes universitários e não àqueles cujo processo de socialização contemplou o uso de outras mídias de consumo ativo, como videogames agressivos. O segundo aspecto relevante deste estudo indica que uma versão de dois fatores da DTSS – e não de apenas um fator – pode ser mais sensível a efeitos de curto prazo de anúncios na TV.

O problema de pesquisa aqui discutido toca, inevitavelmente, um debate sobre a necessidade de regulação (ou de autorregulação) da narrativa publicitária da indústria automotiva. Assim como outras indústrias sofreram limitações no seu direito de livre persuasão publicitária – como as de tabaco e álcool –, parece ser oportuno considerar restrições sobre o uso da glorificação do risco na tentativa de aumentar as vendas automotivas. Diante da gravidade e extensão de milhares de acidentes de transporte no Brasil e no mundo, especialmente entre jovens, cabe assumir uma postura mais conservadora neste âmbito.

  • 1
    Os outros quatro são contextuais: falta de segurança rodoviária, falta de segurança dos veículos, tratamento médico inadequado após um acidente e leis e aplicação de regras inadequadas.
  • 2
    O mesmo código, no Anexo O (dedicado a anúncios sobre veículos motorizados), proíbe “sugestões de utilização de veículo que possam pôr em risco a segurança pessoal do usuário e de terceiros, tais como ultrapassagens não permitidas em estradas e excesso de velocidade”. Além disso, desde 2009, o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503) diz em seu artigo 77-B que “toda peça publicitária destinada à divulgação ou promoção, nos meios de comunicação social, de produto oriundo da indústria automobilística ou afim, incluirá, obrigatoriamente, mensagem educativa de trânsito a ser conjuntamente veiculada”.
  • 3
    Este trabalho não se ocupa, contudo, de questões relativas ao processo psicológico que resulta da exposição a conteúdo que glorifica o risco e antecede atitudes ou comportamentos de risco no trânsito. Estudos sobre esse objeto podem ser encontrados em Fischer et al. (2009, 2012), Greitemeyer e Osswald (2010)GREITEMEYER, T.; OSSWALD, S. Effects of Prosocial Video Games on Prosocial Behavior. Journal of Personality and Social Psychology, v. 98, n. 2, p. 211-221, 2010.. O âmbito deste estudo de Comunicação, portanto, articula apenas a exposição a conteúdo midiático e atitudes relacionadas à experiência de dirigir.
  • 4
    Nos estudos de Vingilis et al. (2015), a série Modern Family foi utilizada.

Agradecimentos

Agradeço a colaboração dos estudantes de graduação à época da realização da pesquisa: Rebeca Garcia, Pedro Henrique Gomes, Marcelo Cardoso e Victor Gomes, que atuaram na coleta de dados durante as sessões experimentais. Em particular, sou muito grato a Rebeca Garcia pela produção das diferentes versões do programa de TV utilizado, pela adaptação do anúncio da FIAT para o formato de 30” e pela programação do instrumento de coleta. Também sou grato a Evelyn Vingilis por esclarecer dúvidas sobre o experimento que liderou no Canadá, o que ajudou a elaborar a replicação feita no Brasil, e a Alessandro Freire e a Victor Gomes, por comentários feitos em versões anteriores deste artigo. Lapsos e erros remanescentes, no entanto, são de minha exclusiva responsabilidade.

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Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Asistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2020
  • Aceito
    16 Jun 2022
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