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Quantas Marias existem? Devires e acesso a planos comuns a partir da experiência em cinema colaborativo

¿Cuántas Marías hay? Se convierte y accede a planes comunes desde la experiencia de cine colaborativo

Resumo

Quantas Marias existem? é um documentário sobre a violência contra a mulher, que resulta da produção amadora e colaborativa em cinema. Descreve-se, neste artigo, o processo de construção narrativa, as significações visuais e os atravessamentos subjetivos. O objetivo é mapear os movimentos e linhas que compuseram esta experiência. Trata-se de uma pesquisa-intervenção que valorizou a participação das mulheres vítimas de violência no roteiro e na produção do filme. Das análises, que mapearam movimentos e linhas que compuseram a experiência de construção do documentário, emergiu o devir mulher como plano comum, formador de um rizoma-documentário.

Palavras-chave
Documentário amador; Processo colaborativo; Experiência; Comunicação; Mulheres

Resumen

Quantas Marias existem? (¿sCuántas Marías existen?) es un documentario sobre la violencia contra la mujer, que resulta de una producción sin experiencia y colaborativa para el cine. En este artículo, se describe, el proceso de construcción narrativa, las significaciones visuales y los cruzamientos subjetivos. El objetivo es mapear los movimientos y líneas que hicieron parte de esta experiencia. Se trata de una investigación-intervención que valoró la participación de las mujeres víctimas de violencia en el guión y en la producción de la película. De los análisis, que mapearon movimientos y líneas que hicieron parte de la experiencia de construcción del documentario, surgió como plan común, el devenir mujer, formando un documental-rizoma.

Palabras clave
Documentario sin experiencia; Proceso colaborativo; Experiencia; Comunicación; Mujer

Abstract

Quantas Marias existem? (How many Marias are there?) is a documentary on violence against women, which results from an amateur and collaborative production of movies. This paper describes the process of narrative construction, the visual meanings and subjective intersections. The objective is to map the movements and lines that make up this experience. It is an intervention-research that valued the participation of the women who were victims of violence in the script and production of the film. From the analyses, which mapped as movements and lines that made up the experience of making the documentary, the process of becoming a woman emerged as a common plan, forming a documentary-rhizome.

Keywords
Amateur documentary; Collaborative process; Experience; Communication; Women

Introdução

Um documentário sobre a violência contra a mulher produzido de forma colaborativa com as protagonistas. A construção narrativa decorrente do roteiro teve a participação de mulheres vítimas de violência, assim como de estudantes universitárias que se inscreveram em um curso de produção audiovisual promovido pelo grupo de pesquisa Ecosofias, Paisagens Inventivas (certificado pelo CNPq) e em parceria com o projeto de extensão Interfaces, ambos da Universidade do Vale do Taquari (Univates)1 1 Esta pesquisa tem o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). .

As narrativas, assim como as significações visuais, ofertadas aos espectadores por meio do documentário resultante da intervenção, e os atravessamentos que perpassaram a subjetividade da equipe que se envolveu mais diretamente são analisados neste artigo, que tem como objetivo mapear os movimentos e linhas que compuseram esta experiência.

Trata-se da cartografia de uma pesquisa-intervenção que valorizou a participação das mulheres vítimas de violência no roteiro e produção do filme. Quatro mulheres relatam suas histórias e os caminhos que as levaram a denunciar os abusos sofridos, retomando o poder sobre suas vidas. O filme é uma partilha das experiências de vida delas, que gerou experiências na vida das estudantes universitárias ao longo do processo de narrá-las.

Método

Uma intervenção provocada pelo grupo de pesquisa Ecosofias, Paisagens Inventivas, atrelado ao Programa de Pós-Graduação Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) da Universidade do Vale do Taquari (Univates), buscou atrair estudantes universitários a inscreverem-se no Curso de Formação em Produção Audiovisual Interfaces, promovido por projeto de extensão homônimo. O desafio era gerar a apropriação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para a produção de documentários sobre os temas do projeto: violência contra a mulher, pensamento nômade, migrações, ambiente. Uma bolsista atuou em cada grupo temático como participante-pesquisadora, tendo como tarefa dinamizar, observar e registrar o processo, mapeando os movimentos cartograficamente. Este artigo relata uma das quatro experiências de produção audiovisual.

A produção audiovisual em forma de documentário, resultante das intervenções, possibilitou analisar a produção de sentido sobre os temas, já que cada filme era um documento de etnografia visual2 2 O documentário está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=HKCRThP8oA8. . Documento este que foi produzido pelos participantes da pesquisa, diferente do uso que se tem dado à etnografia visual, que limita-se, geralmente, a auxiliar a pesquisa na documentação do que ocorre a campo.

As informantes-participantes eram estudantes universitárias que foram envolvidas na pesquisa para que produzissem narrativas visuais. Elas, por sua vez, inseriram como participantes do documentário as quatro mulheres vítimas de violência doméstica que estiveram em atendimento no Serviço de Assistência Jurídica (SAJUR), da Univates. Elas se reuniam uma vez por semana, constituindo-se como um grupo de apoio entre si e psicológico.

Para a construção do documentário, agimos inspirados no cinéma ou anthropologie partagée (cinema e antropologia compartilhada), de Jean Rouch, modelo segundo o qual os antropólogos (no nosso caso pesquisadores de diferentes áreas) colaboram com cineastas e ‘nativos’ em todas as etapas de produção. Como resultado, temos uma “obra repartida”, segundo Fonseca (1995)FONSECA, C. A noética do vídeo etnográfico. Horizontes Antropológicos, ano 1, n. 2, p. 187-206, 1995., relatada de forma cartográfica.

A pesquisa-intervenção para a produção do filme mesclou tecnologias de mídia com as tecnologias sociais colaborativas e a expressão por meio da arte audiovisual, proposta como uma das linhas da educomunicação para a produção de conhecimento por meio de processos coletivos e participativos (MAZZARINO, 2021MAZZARINO, J. M. Ecosofia NAT: design para comunicação ambiental. Iguatu: Quipá Editora, 2021.). Entendemos que a perspectiva da educomunicação aprofunda a experiência da pesquisa-intervenção, já que garante a participação dos sujeitos envolvidos como protagonistas, em uma “inclusão ativa no processo de produção de conhecimento”, de modo que, assim, intervém na realidade, desestabilizando hierarquias de saberes (KASTRUP; PASSOS, 2014KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 15-41., p. 26).

A cartografia, adotada na pesquisa-intervenção, caracteriza-se por acompanhar processos, no que faz “emergir realidades que não estavam ‘dadas’, à espera de uma observação”, dizem Barros e Barros (2014, p. 175)BARROS, L. M. R.; BARROS, M. E. B. O problema da análise em pesquisa cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 175-202.. E continuam:

O interesse em uma pesquisa é mútuo; ele concerne tanto a pesquisadores quanto a pesquisados. Por isso se pode afirmar que a pesquisa é intervenção: porque ela gera articulação. [...] articular-se é participar ativamente na produção de um conhecimento: a pesquisa é tanto mais articulada quanto mais participativa.[...] Acessar a experiência em uma pesquisa nos coloca, assim, diante da fronteira cambiante entre objetividade e subjetividade; é preciso estar disponível para ambas para acolher a experiência

(BARROS; BARROS, 2014BARROS, L. M. R.; BARROS, M. E. B. O problema da análise em pesquisa cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 175-202., 177-178).

De modo complementar à observação sobre a feitura do filme, para a produção de mais dados aplicaram-se questionários com questões abertas e de livre adesão, enviados às estudantes universitárias e à participante-pesquisadora, que teve como objetivo compreender sentidos acerca da experiência do curso; do tema; das relações sociais; do produto (documentário); da apropriação tecnológica e sobre emoções que perpassaram a experiência.

O documentário é um relato poderoso sobre mulheres que enfrentaram seus medos e decidiram mudar sua história de vida. Através da narração das suas histórias, com apoio de dados estatísticos, é possível conhecer algumas realidades de violência doméstica, assim como maneiras de reverter a situação e identificar formas de apoio, ajudando outras mulheres a superarem o seu drama de violência, lutando pelos seus direitos.

Linhas, plano comum e devires

Quando falamos em linhas nos remetemos a toda constelação de acontecimentos que perpassam os sujeitos. Cada um de nós é composto por linhas que nos acompanham ao longo de toda a nossa vida. Deleuze e Guattari (2011)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. dizem que essas linhas formam nossos rizomas e que eles são uma tipificação aberta que nos atravessa ao longo de toda nossa caminhada. No seu decorrer, ampliamos esse rizoma com as experiências.

As linhas são compostas por intensidades. Elas são de três tipos e umas se transformam nas outras, em um movimento dinâmico: linha de segmentaridade dura; linha de segmentação maleável, a linha de fuga ou de ruptura (DELEUZE; GUATTARI, 2011DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.). A primeira delas é perpassada pelas experiências que nos constroem enquanto indivíduo. São linhas que em sua composição se estratificam, sendo mais difícil a sua possibilidade de transformação. Enquanto a seguinte é uma linha que se compõe entre, que transita entre estagnar ou ser ruptura. A linha de fuga ou de ruptura se encontra entre as linhas que brotam do desejo. Ser uma linha de fuga não necessariamente é algo bom, assim como ser uma linha dura não necessariamente é algo ruim. O encontro dessas linhas nos produz enquanto seres, e dessa produção resultam os afetos e as maneiras de nos encontrarmos com o mundo (DELEUZE; GUATTARI, 2011DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.).

Até o momento de encontro dessas mulheres com as estudantes, todas construíram histórias e caminhos que se encontraram por semelhança. Ao compartilharem suas histórias, elas reconheceram-se entre si, acessando um plano comum. Para Kastrup e Passos (2013)KASTRUP, V; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013., na experiência, o que emerge como comum gera pertencimento ao coletivo. O outro é reconhecido como aquele com quem se compartilham as mesmas angústias, criando abertura para o que se denomina “plano comum”.

[...] a partilha reparte a realidade e cria domínios de participação. Partilhamos um domínio comum do qual fazemos parte em função do modo como juntos habitamos território, coexistimos em tempo e compartilhamos um tipo de atividade, um modo de fazer

(KASTRUP; PASSOS, 2013KASTRUP, V; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013., p. 268).

Dessa maneira, os devires se abrem e se entrecruzam. Segundo Barbosa (2014, p. 14)BARBOSA, J. C. Involução criadora: o maior e o menor na obra de Gilles Deleuze. 2014. 177 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal., “o devir é um processo de experimentação, que nos coloca fora dos muros das significações dominantes, também é experimentação do mundo e, portanto, abertura de novas possibilidades para a constituição de mundos diferentes”.

Ao encontrarem significações outras, as mulheres vítimas de violência envolvidas no processo de construção de um audiovisual expandiram os acontecimentos que vivenciaram ao ponto de acessar o plano comum. Quando todas partilham do mesmo ambiente, relatando vivências semelhantes, percebem-se uma na outra. Quando as estudantes adentram este ambiente de troca, acessam o acontecimento que uniu as mulheres e percebem em si mesmas estas outras. Quando se dispuseram a falar de si para a outra, visitaram emoções que, por serem dolorosas, desacomodaram aquelas que escutavam. O audiovisual colocou-se como uma forma de pretexto para o encontro das linhas de vida de todas elas.

Audiovisuais como possibilidade de criação colaborativa

Quando pensamos o audiovisual como uma forma dupla de apropriação – da experiência do outro e da própria tecnologia midiática –, trabalhamos em uma perspectiva que torna todos que se envolvem no processo de produção de um filme atores ativos no processo. Os olhares das mulheres envolvidas na experiência de fazer cinema colaborativo eram amadores, de quem experimentava pela primeira vez.

Quando alguém segura uma câmera e se confronta ao real por um minuto, num quadro fixo, com total atenção a tudo que vai advir, prendendo a respiração diante daquilo que há de sagrado e de irremediável no fato de que uma câmera capte a fragilidade de um instante, com o sentimento grave de que esse minuto é único e jamais se repetirá no curso do tempo, o cinema renasce para ele como o primeiro dia em que uma câmera operou

(BERGALA, 2008BERGALA, A. A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: Booklink e CINEAD/UFRJ, 2008., p. 210).

Como uma criança ao experimentar um novo sabor, a pessoa irá experimentar uma nova maneira de ver e observar o mundo ao redor. Por isso, segundo Migliorin (2013, p. 14)MIGLIORIN, C. Cinema e Escola, sob o Risco da Democracia. In: FRESQUET, A. M. (org.). Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 12-17., a experiência com o cinema instala-se na insegurança, no estranhamento e na instabilidade da criação. A partir desse estranhamento criaram-se linhas que construíram novos sentidos a vivência.

Guimarães e Lanza (2015, p. 86)GUIMARÃES, L. G.; LANZA, R. Cinema e escola: conexões e desvios. Linha Mestra, n. 27, p. 86-89, 2015. afirmam que “a criação oferece deslocamentos e escolhas que se descobrem no próprio percurso uma vez que se é atravessado por acontecimentos múltiplos”. Ao debruçar-se sobre essas novas descobertas, o grupo envolvido no processo experimentou novos atravessamentos, podendo compor a história conforme as trajetórias que estavam sendo contadas. Dessa forma, ao experimentar-se como criadoras de um filme, todas compartilharam a autonomia da criação. Como Deleuze (2005, p. 13)DELEUZE, G. A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2005. pontua, “[...] a ação flutua na situação, mais do que a arremata ou encerra”. Uma efetua trocas para a outra.

Filmar é uma maneira de abrir o corpo para novas percepções e sentidos (GOMES; DELBON, 2015GOMES, F. R. G.; DELBON, T. M. Z. G. F. Imagem-afecção como máquina do sensível: a potência dos signos sonoros no cinema e nas escolas. Linha Mestra, n. 27, p. 311-313, 2015.). Quem conta a história explora o seu corpo em sintonia com aquele ambiente em que o outro está incluído, e quem está do outro lado sente no seu corpo o permear do olhar desse outro que o vê. Cada um, com seus próprios emaranhados de linhas formadoras de rizomas, se encontrando com as linhas do audiovisual para compor novos platôs de emaranhados.

A captação das imagens é conduzida pelo olhar da câmera. Enquanto isso acontece, os traços são carregados do olhar de quem carrega a experiência que é relatada. Ao fazer isso, é incorporada a história contada à história do ator-câmera, transmutando-se e transformando-se com a realidade na ficção apresentada (GUIMARÃES, 2013GUIMARÃES, L. B. A sala de aula em cena: imagem e narrativas. Leitura & Prática, v. 31, n. 61, p. 113-123, 2013.). Emaranham-se os gêneros também.

Migliorin (2013)MIGLIORIN, C. Cinema e Escola, sob o Risco da Democracia. In: FRESQUET, A. M. (org.). Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 12-17., ao falar sobre as pontes que o cinema possibilita, expande a noção do habitar cinema. Para o autor, encontrar-se com a possibilidade de fazer ou de experienciar cinema é encontrar-se com possibilidades artísticas. Essa possibilidade de conexão é simbiótica, diz, pois “o cinema não pede nada, apenas se aconchega nas capacidades sensíveis dos sujeitos comuns”. (MIGLIORIN, 2013MIGLIORIN, C. Cinema e Escola, sob o Risco da Democracia. In: FRESQUET, A. M. (org.). Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 12-17., p. 15).

A possibilidade de criar e produzir um filme joga para os sujeitos a ideia de inventividade, onde cada um vivenciará a oportunidade de “crer e duvidar” (Fresquet, 2013FRESQUET, A. M. Apresentação do projeto Cinema para Aprender e Desaprender. In: FRESQUET, A. M. Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 3-11., p. 10). Dessa forma, ser transportado para o espaço audiovisual é viver a capacidade de se reinventar e produzir algo relevante. Experienciando essas vivências, os sujeitos se identificam na possibilidade das relações entre eu e o outro. “A partir do cinema, pensamos o tempo, inventamos a memória e lembramos o futuro” (FRESQUET, 2013FRESQUET, A. M. O cinema como arte na escola: um diálogo com a hipótese de Alain Bergala. In: FRESQUET, A. M. (org.). Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 69-88., p. 10).

Ao ser parte dessa composição, as mulheres envolvidas no processo puderam experimentar essa troca. Escreveram sobre sua história e redesenharam o que foi o seu passado. Experimentando-se como autoras, exploraram pela primeira vez a linguagem cinematográfica como forma de expressão das suas dores. Segundo Omelczuk, Fresquet e Santi (2015, p. 388)OMELCZUK, F.; FRESQUET, A. M.; SANTI, A. M. Educação, cinema e infância: um olhar sobre práticas de cinema em hospital universitário. Interface, v. 19, n. 53, p. 387-394, 2015.: “As imagens geram emoções e a atividade emocional também gera imagens”. Fazer cinema junto a grupos como esse constituiu-se em uma possibilidade de múltiplos aprendizados. A sensibilidade atravessou a experiência mesmo no que não vemos na tela, lugar que também diz muito sobre como o filme as produziu. Participar do fazer do documentário atravessou a subjetividade de cada uma.

Narrativas

Formado o grupo de participantes universitárias, logo desenvolveu-se o esboço do roteiro devido ao “conhecimento prévio” de uma participante e da professora que apoiava e fazia a abordagem do tema violência doméstica nos cursos da Univates. Era final de junho de 2016 e o grupo de apoio às mulheres vítimas da violência só voltaria a se reunir em agosto, então definiram que usariam o mês de julho para pesquisar dados que pudessem enriquecer o documentário, visitar os órgãos de apoio e entrevistar os responsáveis pelo atendimento às mulheres.

O grupo demonstrou dinamicidade nas decisões, o que foi definido pelo perfil das participantes, pelo apoio da professora responsável pelo seu acompanhamento, pelas informações disponibilizadas e pela divisão de tarefas. Rapidamente definiram os tempos de abordagem dos diferentes focos que comporiam o documentário.

Tentamos estabelecer uma estrutura para o audiovisual, colocando aproximadamente 5 minutos para falar da rede de atendimento, 10 minutos para os relatos das mulheres, e 5 minutos para a apresentação de dados e das questões mais abrangentes, como questões internacionais, ONGs, entre outros. Depois de definidos esses passos, colocamos algumas perguntas prévias que poderemos usar como norte para as entrevistas. Muitas coisas foram discutidas, assistimos alguns vídeos para ver como poderíamos explorar os enquadramentos e as imagens, mostrando para a professora que nos apoiava no grupo nossas ideias de como fazer o audiovisual

(Diário da participante-pesquisadora, 06/07/2016).

No dia de apresentação do roteiro aos outros três grupos que participavam do curso de formação, a participante-pesquisadora percebeu que ele estava “bem encaminhado” em relação aos demais. Segundo ela, “foi bom observar os outros e ter essa conversa para ter novas ideias e pensar melhor nosso roteiro”.

Roteiro definido, agendaram entrevistas nos órgãos de apoio e encontraram-se com as mulheres vítimas de violência doméstica. Estes contatos foram mediados pela professora que apoiava o grupo, o que acabou facilitando a participação das mulheres. Antes das gravações, elas contaram a trajetória de violência vivida e identificaram elementos comuns de violência e, também, de superação. Elas mostravam-se apreensivas em participar, mas gostaram da ideia do audiovisual e “ficaram bem empolgadas em ajudar. Além disso, se sentiram mais tranquilas quando mencionei que queríamos a ajuda delas e que poderíamos construir juntas”, escreve a participante-pesquisadora (Diário, 02/08/2016).

No encontro seguinte, o grupo mostrou vídeos sobre o tema do documentário para as mulheres, como fora combinado, e começaram a definir os planos e enquadramentos que as deixariam mais à vontade. Elas manifestaram que queriam ser gravadas em um “lugar alegre”. A participante-pesquisadora relata:

Expliquei que poderíamos pegar detalhes como mãos, boca, olhos, fazer em tons preto e branco, tudo para que elas se sentissem preservadas. Então uma delas comentou que gostaria que a gente filmasse as mãos. Nesse momento pude perceber que elas estavam se sentindo mais à vontade com a nossa presença e, com a visualização dos vídeos, elas tiveram uma ideia mais clara da nossa proposta

(Diário, 09/08/16).

Elas disseram que preferiam saber antecipadamente as perguntas que lhes seriam feitas. Ficou acordado que poderiam falar sobre outros aspectos não previstos e, ainda, não manifestarem-se sobre algo que as deixassem constrangidas. Assim, tomaram conhecimento do previsto e puderam afetar o roteiro. Uma encorajava a outra a relatar sua história de vida. Nisto, pareceu fundamental a postura das participantes de deixar as mulheres à vontade para recuarem se considerassem necessário. Este cuidado permeou toda esta experiência de intervenção.

Na semana seguinte, as universitárias deram continuidade às gravações dos depoimentos. Neste dia, outra mulher integrou-se ao grupo. Uma delas trouxe um texto que queria ler. Contava sua história e a importância do grupo de apoio. Outra sentiu necessidade de completar o depoimento da semana anterior. Com as outras duas foi preciso negociar os planos e enquadramentos, pois mostravam-se “bem retraídas”. Uma delas ressaltou que “não queria falar muito”. A participante-pesquisadora lhe perguntou como poderiam gravar: explorando um detalhe da mão ou de costas.

Ela disse não querer gravar nada. Sugeri então apontar a câmera para os pés e ela concordou. Ela estava bem revoltada com as injustiças que sofreu. Percebi que estava bem abalada e não quis contar sua história. Começou falando sobre os preconceitos, sobre ter que passar por tudo isso e, ainda, ser discriminada pela sociedade que, para ela, é extremamente machista

(Diário da participante-pesquisadora, 23/08/2016).

A edição teve início com o grupo mostrando para a professora responsável as imagens coletadas. Fizeram a pré-seleção das imagens, conversaram sobre a trilha sonora e buscaram uma lógica de organização da história, retomando o roteiro.

A edição ficou delegada, principalmente, para a participante-pesquisadora, que tinha alguma experiência com esta tarefa. O grupo definiu a estética do vídeo, combinando que nos fragmentos que relatavam a situação de agressão, usariam imagens em branco e preto, fazendo uma transição de fundo preto, em silêncio, para passar de um relato para o outro. As imagens que mostrassem o apoio encontrado para reverter a situação de violência doméstica seriam coloridas. Uma bolsista de apoio e um técnico de imagens tiveram como função principal ajustar o som das imagens. Além disso, a bolsista ajudou com as transições entre as imagens. Ela avalia que “à medida que se escolhe o material, este vai sendo organizado na linha do tempo, facilitando a construção do documentário. O vídeo está ficando muito bom” (Diário da participante-pesquisadora, 13/10/2016). Na edição, a ajuda e as dicas simples de quem tinha mais experiência foram valiosas, segundo a participante-pesquisadora.

Significações

Quantas Marias existem? documenta a violência contra a mulher apoiada na experiência de vítimas que participam da rede de apoio. O filme inicia com o depoimento dramático da tentativa de homicídio pelo marido de uma delas, evitada pelo filho. Esta é a única mulher que mostra o rosto. Em seguida, uma tela preta apresenta dados sobre a violência contra a mulher no Brasil.

Outro depoimento surge na tela. A mulher, filmada do pescoço para baixo, relata as ofensas e as ameaças de morte sofridas por ela e suas filhas. A voz embarga. Outra mulher, sentada, é filmada também do pescoço para baixo e relata agressões físicas e verbais.

Novamente surgem na tela informações sobre o artigo 5º da Lei Maria da Penha, nº 11340/2006, que caracteriza a violência doméstica e familiar contra a mulher. Uma professora explica sua importância para pautar a sociedade sobre o tema.

Neste momento, voltam os relatos das mulheres, agora marcados pela decisão de romper o ciclo de violência e as dificuldades enfrentadas para denunciar o companheiro, especialmente pelas relações familiares e comunitárias. Uma das mulheres critica a sociedade, por incentivar o rompimento com a violência, mas não apoiar quando a mulher e seus filhos ficam desamparados e sofrem exclusões em diferentes espaços.

Novos dados estatísticos surgem na tela negra, desta vez para informar sobre o atendimento à mulher que procura ajuda. Segue-se a entrevista com a delegada responsável pela Delegacia da Mulher, que informa sobre o trabalho de acolhimento neste departamento público. Em seguida a professora fala da Casa de Passagem, que acolhe as mulheres que denunciam seus companheiros, junto com seus filhos menores. A organização é não governamental e existe desde 1998, mantida por voluntários.

Nova tela negra esclarece os tipos de violência. Em seguida os depoimentos das mulheres informam das ameaças continuadas após a separação dos agressores. Então, a delegada retorna para lembrar sobre as diferentes formas de violência e as instruções que as mulheres e os agressores atendidos na Delegacia da Mulher recebem. Uma mulher relata o atendimento que teve no Serviço de Assistência Jurídica da Univates e no Centro de Referência no Atendimento à Mulher (CRAM).

Uma das mulheres relata que usufrui de medidas protetivas. Então, segue-se a professora explicando esta e outras garantias que são decorrentes da Lei Maria da Penha. Uma das mulheres afirma que quer ajudar outras mulheres vítimas de violência: “Sempre vale a pena lutar pelos seus direitos”. E ressalta a necessidade do apoio de familiares e das organizações sociais.

A delegada afirma, então, a necessidade de empoderamento das mulheres. Em seguida surge a primeira mulher que aparece no documentário, lendo uma carta em que defende a necessidade de “seguir sempre em frente”, encorajando as mulheres a denunciar. Apenas nos últimos três minutos do filme as mulheres vítimas de violência aparecem em imagens coloridas, quando relatam a superação da violência doméstica. As imagens ao longo do audiovisual exploram ambientes ao ar livre, com exceção da entrevista com a delegada, que acontece em ambiente interno.

Atravessamentos

Este grupo foi formado, inicialmente, por uma participante-pesquisadora e outras duas alunas de graduação. A insegurança em abordar o tema da violência contra a mulher fez com que a coordenadora do curso tivesse que intervir para dar início ao processo. A insegurança, observou-se com o tempo, era decorrente do cuidado que sentiam que deveriam ter com a abordagem.

A participante-pesquisadora percebeu que as mulheres tinham “um discurso trabalhado”, de quem se empoderou e quer ajudar outras mulheres a superarem seu drama de violência doméstica, lutando por justiça e igualdade. Os encontros entre a participante-pesquisadora e a outra estudante com as mulheres foram marcados pela emoção.

No decorrer da fala ela começou a chorar. Nesse momento fiquei sem reação, não sabia se fazia algo ou não. Na verdade, quase chorei junto. Ela logo parou de falar e parei a gravação. Uma das psicólogas abraçou ela e conversou um pouco para acalmá-la. Ela mencionou que estava cansada de lutar e não ver resultados

(Diário da participante-pesquisadora, 23/08/2016).

Quando ela começou a falar que ele ameaçava não só ela, mas também suas filhas, lágrimas começaram a brotar dos olhos dela, e foi muito comovente ouvir o depoimento dela. Novamente fiquei sem reação […] Como na semana passada, me senti muito tocada com os depoimentos, pois uma coisa é ouvir ou ler algo sobre violência contra mulheres, outra é conviver e ouvir essas histórias de mulheres que passaram por isso

(Diário da participante-pesquisadora, 23/08/2016).

Além das dificuldades pela falta de domínio com as ferramentas de edição, a dimensão emocional do material coletado, sendo reiteradamente escutado, gerou incômodos no grupo de universitárias participantes, que consideraram “pesado” escutar reiteradamente os relatos para adequar o material coletado ao tempo do filme. “Passagens em que as mulheres choram e expõem seus sentimentos acabam tocando muito nós, pois são coisas terríveis só de imaginar” (Diário da participante-pesquisadora, 12/09/2016).

Dar um fio condutor à história, incluindo os dados das pesquisas feitas, efeitos e ajustes no som, foi desafiante para o grupo. Sobre o processo produtivo do audiovisual, a experiência se tornou “um pouco estressante em alguns momentos”, por envolver processos técnicos sobre os quais a participante-pesquisadora tinha pouco conhecimento prévio, por ter sido um processo demorado que exigiu empenho contínuo e, principalmente, por se tratar de um tema emocional. Ela escreve que “o processo foi lento e exaustivo, mas foi também gratificante poder ajudar essas mulheres a contar suas histórias e poder ajudar outras mulheres que estão passando por essas situações” (Questionário, 21/11/2016).

Ao final do processo, ela avaliou que “as dificuldades encontradas ao longo das filmagens e da edição acabaram sendo irrelevantes, pelo significado que o documentário passou a ter. “Conheci histórias e acompanhei alguns acontecimentos que marcaram a vida dessas mulheres e que me marcaram também” (Questionário, 21/11/2016). Para a participante-pesquisadora, o documentário é marcado por bons depoimentos, os quais afetaram sua relação consigo e com os outros.

Depois desse processo passei a refletir mais sobre a minha vida, até mesmo sobre relacionamentos. Me senti motivada e tocada por essas histórias de sofrimento e superação. Passamos por momentos difíceis a vida toda. Passei a valorizar mais as coisas simples, a pensar mais no outro e senti que isso também me motivou, a ponto de sentir vontade de ajudar mais mulheres a sair dessas situações. O audiovisual criou um apelo emocional muito grande pelo envolvimento que tive durante o processo, não se tratava mais de algo alheio a mim, mas sim algo que estava vivenciando e que, de certa forma, começou a fazer parte de mim e das minhas concepções como ser humano

(Questionário, 21/11/2016).

Para a participante-pesquisadora, que cursava Relações Internacionais, a intensidade com que se envolveu no processo de construção audiovisual afetou sua percepção sobre o outro, sensibilizando-a para o significado do compartilhamento e da confiança que se expressam em pequenos gestos, como aqueles que ela presenciou no grupo de apoio: “uma conversa, um abraço, um acolhimento.” A interação com as mulheres vítima de violência a afetou profundamente. “Embora eu já tivesse discutido esse assunto antes, nunca havia tido contato com pessoas que passaram por essas coisas” (Questionário, 21/11/2016).

Em relação à apropriação das tecnologias, evidenciou-se que ela foi a única participante do grupo a editar. O grupo a apoiava, embora não se sentisse à vontade para manipular os equipamentos. No entanto, o fato de o processo forçar a apropriação tecnológica foi considerado por ela um aspecto inovador. “Hoje quando olho filmes ou vídeos acabo sendo muito mais sensível ao trabalho desempenhado por trás do produto final. Me sinto mais confortável agora em manipular essas tecnologias, embora ainda tenha muita coisa a aprender” (Questionário, 21/11/2016). Além do conhecimento técnico, ela exercitou novas formas de ver.

(a experiência) expandiu meus horizontes e minha visão do mundo, desde coisas simples como o olhar fotográfico, a sensibilidade sobre o olhar do outro, as dificuldades que surgiram, a vontade de continuar por um objetivo maior, a gratidão delas ao sentirem que suas histórias foram valorizadas e podem ajudar outras pessoas, a coletividade e o acolhimento que encontrei no grupo, a felicidade delas que é algo que fica estampado nos sorrisos e nas conversas. Creio que meu olhar sobre o ser humano no mundo foi algo que mudou muito com esse audiovisual.

(Questionário, 21/11/2016).

A experiência lhe trouxe o contato com essas diferentes emoções e realidades. Ela diz que adquiriu mais responsabilidade e aprendeu a conviver melhor com pressão. “Foi um processo de aprendizagem imenso”, no qual o que mais lhe afetou foram as histórias de vida das mulheres. [...] É impagável ver a alegria delas ao ouvirem suas histórias sendo contadas a valorizadas” (Questionário, 21/11/2016).

Para a outra participante do grupo, uma estudante de Direito, o que lhe atraiu foi trabalhar com “histórias reais”, quando percebeu a importância de diferentes áreas (Psicologia e Direito) atuarem conjuntamente para buscar a solução de problemas sociais. Por meio da construção do audiovisual, ela conheceu o trabalho da universidade no apoio às vítimas de violência doméstica, que envolve estudantes de sua área, assim como outros cursos de graduação, o que foi considerado relevante para esta participante. “Gostei muito da ideia principal do projeto de unir vários cursos para a produção do audiovisual. Somou experiências e conhecimentos diferentes” (Questionário, 04/11/2016).

Dentre os desconfortos, citou o fato de o grupo ser pequeno, o que foi superado com a percepção da facilidade em se tomarem as decisões: “percebi que uma equipe pequena trabalha tão bem quanto uma maior” (Questionário, 04/11/2016).

A dificuldade maior e que não enfrentou foi a apropriação tecnológica. “Foi bem complicado, não tenho técnica nenhuma com audiovisuais, e confesso que sozinha não conseguiria produzir nem metade do que foi feito. A ajuda da minha parceira foi extremamente importante” (Questionário, 04/11/2016). A compensação veio com o produto: a alegria de contar a história de mulheres que tiveram “a coragem de mudar e escrever um novo final feliz para suas vidas”. Ela acredita que, por meio do audiovisual, pode-se ajudar as mulheres que sofrem ou que já sofreram violência doméstica e alertar aquelas que estão começando novos relacionamentos (Questionário, 4/11/16).

Ela relata que a participação no curso a tirou da “área de conforto” e gerou um “processo de aprendizagem”. Devido a esta escuta “vejo as mulheres com outros olhos hoje em dia. [...] A história da violência, mexeu comigo” (Questionário, 04/11/2016).

Linhas de Marias

Ao longo da produção da narrativa, o grupo exerceu o poder de fazer como uma força coletiva, acessando um plano comum, que emergiu da forma com que definiram funções, de como tomaram decisões e agiram para a concretização do projeto do documentário (roteiro, definição de fontes, agendamentos, realização das entrevistas, edição etc.), mas também do modo como construíram a relação com as mulheres vítima de violência.

Ao encontrarem as mulheres vítimas de violência, planos comuns foram acessados pelas estudantes e participantes – quando decidem, de forma colaborativa, os modos de fazer o filme: o que falar, como enquadrar, onde filmar, o que mais poderia compor a narrativa além do roteiro prévio; pois há a escuta das mulheres, como quando uma delas quis incluir um fragmento de seus escritos no filme.

A colaboração e o cuidado no grupo e com as mulheres vítimas de violência constituíram-se em linhas potentes de grande força que atravessaram a experiência de construção do documentário. A intervenção gerou a potência de criar com o outro um jeito de fazer.

Uma linha dura surgiu quando algumas tarefas foram centralizadas na participante-pesquisadora. Esta linha dura do dever fazer é tecida por outra, da mesma intensidade e de movimento contrário, do não fazer, colocada em movimento pela participante que não quis manipular os equipamentos de edição.

O filme, resultado de planos comuns acessados ao se narrar histórias de violência de gênero, expõe um padrão comum aos documentários sobre temas como este. A repetição de um modo de fazer, já conhecido, mostra a introjeção dos padrões hegemônicos da mídia tradicional, mesmo quando há liberdade de apropriação dos meios de criação.

O documentário é formado por relatos que compõem os casos de violência, estatísticas, informações sobre legislação e sobre órgãos de apoio, e depoimentos de fontes oficiais. As linhas duras da repetição ao explorar o gênero compõem a malha de sentidos do audiovisual Quantas Marias Existem?.

Nenhuma linha de fuga. Até o uso das imagens coloridas para ilustrar a solução, em contraponto às imagens preto e branco para ilustrar os problemas, é um recurso semiótico que repete o gênero, apesar de se reconhecer que dá plasticidade ao produto.

Trata-se de um filme “sério”, como cabe ao tema abordado. Feito de durezas que só caem por terra quando a participante-pesquisadora “fica sem reação” diante da emoção compartilhada com as entrevistadas. Este imprevisto a toma de assalto.

A linha de fuga que atravessa o processo é a emoção de deparar-se mulher, suscetível à mesma violência relatada pela outra. O acesso ao devir mulher como plano comum e linha de força dá potência ao processo, bate e transforma a participante-pesquisadora. Movimenta nela, por acolhimento, a emoção de sentir-se como a outra.

O devir mulher como plano comum

Da análise das narrativas, das significações visuais expostas no documentário e dos atravessamentos subjetivos, mapeados como movimentos e linhas que compuseram a experiência de construção do documentário, emergiu o devir mulher como plano comum. Ao retomar histórias de vida permeadas pela violência e pela retomada da vida em suas próprias mãos, as mulheres partilharam algo que pode suceder a qualquer uma. Esta percepção atravessou os corpos das estudantes. Um plano comum de linhas se organizou como uma constelação ao longo do fazer documentário enquanto um acontecimento comum. As linhas de todas as mulheres envolvidas no processo de produção audiovisual, que as acompanham ao longo da vida, ampliaram-se e formaram um rizoma-documentário.

Para Deleuze e Guattari (2011)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., cada linha é composta por intensidades acessadas por meio do que constitui a experiência. Intensidades mais duras, mais flexíveis, mais fugidias encontram-se, resultando em uma produção de afetos e maneiras de encontros também com o mundo. Advém daí o plano comum. Como Kastrup e Passos (2013)KASTRUP, V; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. já nos apontavam, comum é o que é vivido na experiência como pertencimento a um coletivo, reconhecendo o outro pelo acesso a um lugar comum: ser mulher, estar à mercê de um companheiro. A partilha criou domínios de participação dando abertura a devires femininos que se entrecruzaram no fazer que foi comum a todas elas: narraram juntas experimentando-se no mundo para além dos modos hegemônicos de registros de imagens em movimento. Ao disporem-se a falar de si, as Marias expandiram os acontecimentos que vivenciaram ao ponto de se criar um plano comum com as outras.

Mesmo sem serem vítimas de violência, as estudantes foram tomadas pelos tremores dos corpos das outras, que deixaram de ser outras para serem partes de si, nem que por poucos momentos, plenos de intensidades. Sentiram outras maneiras de experienciar o mundo ao emocionarem-se com os relatos, agora registrados como documentos de uma memória social feminina. Estranharam o fazer cinema e vivenciaram a instabilidade da criação, como diz Migliorin (2013)MIGLIORIN, C. Cinema e Escola, sob o Risco da Democracia. In: FRESQUET, A. M. (org.). Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 12-17., construindo novos sentidos à existência. Abriram os corpos para novas percepções e sentidos (GOMES; DELBON, 2015GOMES, F. R. G.; DELBON, T. M. Z. G. F. Imagem-afecção como máquina do sensível: a potência dos signos sonoros no cinema e nas escolas. Linha Mestra, n. 27, p. 311-313, 2015.), explorando a criação de um filme compartilhado em todos os sentidos, como proposto metodologicamente.

Assim, por meio da inventividade, construindo algo relevante, aconchegaram-se nas suas mútuas capacidades sensíveis, inventando memórias (MIGLIORIN, 2013MIGLIORIN, C. Cinema e Escola, sob o Risco da Democracia. In: FRESQUET, A. M. (org.). Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 12-17.; FRESQUET, 2013FRESQUET, A. M. Apresentação do projeto Cinema para Aprender e Desaprender. In: FRESQUET, A. M. Currículo de cinema para escolas de educação básica. Rio de Janeiro: CINEAD/LECAV, 2013. p. 3-11.). Vivenciaram uma dimensão da realidade que é processo de criação, poesis. Ao conhecê-la transformaram a realidade e a si mesmas. Acessaram um plano comum entre sujeito e objeto, entre elas. Comum este que não é pautado em relações de simples semelhança, ou de identidade, mas sim por um movimento que sustenta a construção de um mundo heterogêneo, em que as singularidades tiveram seu lugar resguardado ao se compor um coletivo (KASTRUP; PASSOS, 2014KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 15-41.). Inspirados em Rancière, os autores afirmam que:

O comum porta o duplo sentido de partilha e pertencimento. Cada um desses sentidos indica um procedimento ou atividade sem a qual a produção do comum não se efetiva. O comum é aquilo que partilhamos e em que tomamos parte, pertencemos, nos engajamos

(KASTRUP; PASSOS, 2014KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 15-41., p. 21).

Consideramos necessário retomar a ideia destes autores, para quem garantir a participação dos sujeitos envolvidos na pesquisa valida o protagonismo e sua inclusão ativa no processo, intervindo na realidade, desestabilizando modos de organização do conhecimento e das hierarquias das instituições. Participação é a experiência de pertencimento, sintetizam Kastrup e Passos (2014)KASTRUP, V.; PASSOS, E. Cartografar é traçar um plano comum. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 15-41.. Ao fazer um filme com as mulheres vítimas de violência, que definiram parte do quê e de como contar suas histórias, elas deixaram de ser informantes entrevistadas, engajando-se no processo de construção narrativa. Assim, quando um modo de pesquisar não se separa de um plano de criação, quando mundos são produzidos, o que se faz é cartografia (POZZANA, 2014POZZANA, L. A formação do cartógrafo é o mundo: corporificação e afetabilidade In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 42-65.).

Considerações finais

A experiência de fazer cinema amador de forma compartilhada nos fez adentrar a pesquisa de campo registrando imageticamente experiências singulares de violência doméstica, que, no processo da pesquisa-intervenção, se transformaram, pois os sentidos mobilizados foram incorporados ao serem compartilhados, encarnando “modos de ação mais potentes”, reconhecendo a “experiência do outro” e, desse modo, contribuindo “para a emergência de novas subjetividades, de novas possibilidades de ação e de conexão com o mundo”, como propõem Sade, Ferraz e Rocha (2014, p. 67-68)SADE, C.; FERRAZ, G. C.; ROCHA, J. M. O Ethos na confiança da pesquisa cartográfica: experiência compartilhada e aumento da potência de agir. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 66-91..

O propósito da pesquisa foi mapear os movimentos e linhas que compuseram a experiência de fazer um documentário compartilhado, por meio da pesquisa-intervenção. E foi assim que atendemos “o objetivo principal da cartografia de pesquisar a experiência, entendida como o plano no qual os processos a serem investigados efetivamente se realizam” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014TEDESCO, S. H.; SADE, C. CALIMAN, L. V. A entrevista na pesquisa cartográfica: a experiência do dizer. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum – volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 92-127., p. 93).

As intervenções que sustentaram o processo de pesquisa revelaram-se práticas colaborativas que produziram imagens e provocaram experiências por dentro do processo de feitura e ao se fazerem oferta de sentidos em circulação. Os registros desta pesquisa-intervenção, como denominamos, são caracteristicamente biográficos, porque valorizam a subjetividade dos participantes, sejam a participante-pesquisadora, as participantes estudantes universitárias ou as mulheres que relatam suas histórias de violência doméstica. Como denominar estes relatos: autobiográficos, autoetnográficos, etnográficos ou cartográficos?

Alguns são mais etnógrafos, outros cartógrafos, sendo que uns podem vir a se transformar em outros, entre eles os próprios participantes. Na etnografia o registro é uma busca por aproximar-se do ponto de vista de quem vive a experiência, enquanto na cartografia o pesquisador e o participante mergulham na experiência [...] deixando-se afetar pelo processo. Na etnografia o pesquisador está menos implicado na experiência de campo

(MAZZARINO, 2021MAZZARINO, J. M. Ecosofia NAT: design para comunicação ambiental. Iguatu: Quipá Editora, 2021., p. 51).

Mazzarino (2021)MAZZARINO, J. M. Ecosofia NAT: design para comunicação ambiental. Iguatu: Quipá Editora, 2021. propõe, então, a etnocartografia como uma possibilidade que respeita os fluxos que emergem dos registros, com suas intensidades variáveis, e os modos de expressão de quem registra. Produzir a cartografia do Quantas Marias existem? foi deixar-se levar pelo que se pesquisa, acompanhando as intensidades incorporadas ao longo do processo.

Referências

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Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2020
  • Aceito
    02 Nov 2022
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