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As fontes em notícias de violência contra a mulher: um estudo de caso do portal G1
Las fuentes de noticias de violencia contra las mujeres: un caso de estudio del portal G1
The sources in news of violence against women: a case study of G1 portal
Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vol. 46, e2023122, 2023
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM)

Artigos


Recepção: 22 Fevereiro 2021

Aprovação: 25 Outubro 2023

DOI: https://doi.org/10.1590/1809-58442023122pt

Resumo: A violência de gênero no Brasil afeta cada vez mais mulheres. Elas veem suas vidas destruídas, física e psicologicamente, por conta de agressões sofridas, muitas vezes, pelos seus próprios familiares e companheiros. E assim como em todas as outras áreas da sociedade, a imprensa também tem papel fundamental na conscientização sobre denúncias e alerta acerca da gravidade desse cenário. O que vemos muitas vezes, porém, são matérias factuais, sem o aprofundamento necessário e produzidas por jornalistas despreparados para falar sobre essa temática. Para entender como o jornalismo diário na internet aborda a violência contra a mulher, esta investigação analisou matérias sobre esse tema em cinco editorias do portal brasileiro G1 no ano de 2017. A escolha das editorias, relacionadas a Estados brasileiros se deu por serem estes, Roraima, Goiás, Mato Grosso, Rondônia e Espírito Santo, os mais violentos para mulheres viverem, de acordo com pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Foram analisadas suas fontes e se o conteúdo é produzido com uma abordagem humanizada.

Palavras-chave: Fontes jornalísticas, Feminicídio, Jornalismo diário, Violência contra as mulheres, Análise de fontes.

Resumen: La violencia de género en Brasil afecta cada vez a más mujeres. Ellas ven sus vidas destruidas, física y psicológicamente, como resultado de agresiones sufridas muchas veces por sus propios familiares y parejas. Y como en todos los demás ámbitos de la sociedad, la prensa también desempeña un papel fundamental en la concienciación sobre la denuncia y en la alerta sobre la gravedad de este escenario. Sin embargo, lo que vemos a menudo son historias basadas en hechos, sin la profundidad necesaria y producidas por periodistas que no están preparados para hablar de este tema. Para entender cómo el periodismo diario en internet trata la violencia contra las mujeres, esta investigación analizó artículos sobre este tema en cinco secciones del portal brasileño G1 en 2017. Los editoriales relacionados con los estados brasileños fueron elegidos porque Roraima, Goiás, Mato Grosso, Rondônia y Espírito Santo son los estados más violentos para las mujeres, según una investigación del Ipea (Instituto de Investigación Económica Aplicada). Se analizaron sus fuentes y si el contenido se produce con un enfoque humano.

Palabras clave: Fuentes periodísticas, Feminicidio, Periodismo diário, Violencia contra la mujer, Análisis de fuentes.

Abstract: Gender-based violence in Brazil is increasingly affecting more and more women. They see their lives destroyed, physically and psychologically as a result of aggression, which often caused by their own family members and partners. And as in all other areas of society, the press also plays a fundamental role in raising awareness about reporting and warning about the seriousness of this scenario. What we often see, however, are factual stories, without the necessary depth and produced by journalists unprepared to talk about this issue. In order to understand how daily journalism on the internet deals with violence against women, this investigation analyzed articles on this topic in five sections of the Brazilian portal G1 in 2017. The editorials related to Brazilian states were chosen because Roraima, Goiás, Mato Grosso, Rondônia and Espírito Santo are the most violent states for women to live in, according to research by Ipea (Institute for Applied Economic Research). We analyzed their sources and whether the content is produced with a humane approach.

Keywords: Journalistic sources, Feminicide, Daily journalism, Violence against women, Analysis of sources.

Introdução

No Brasil, entre 2008 e 2018, um total de 628.595 pessoas foram assassinadas de acordo com levantamento do Atlas da Violência 20201, desenvolvido, em conjunto, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Deste total, 91,8% das vítimas eram homens e 8% mulheres. Esse número, no entanto, esconde uma realidade diferente paras as vítimas do sexo feminino.

Ao contrário do que acontece com os homens, os crimes nos quais as vítimas são mulheres, muitas vezes, têm autores conhecidos. Isto pode estar associado com os altos índices de violência doméstica, colocando o Brasil como o quinto país com a maior taxa de feminicídio no mundo, de acordo com a pesquisa “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres – Feminicídios”2, realizada pelo governo brasileiro e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), a ONU Mulheres. Além disso, de acordo com o Atlas da Violência, o volume de crimes relatados no ambiente familiar, ou seja, na residência da vítima, registrou aumento de 8,3% entre 2013 e 2018. A partir destes dados, é possível entender que a violência de gênero é um assunto a ser discutido urgentemente no Brasil.

O feminicídio, assassinato de mulheres em decorrência do menosprezo ou discriminação à condição de mulher, é uma tipificação criminal que passou a ser considerada no Brasil a partir de 2015, pela Lei n° 13.104. O termo, no entanto, foi usado pela primeira vez em 1976, em Bruxelas, pela ativista feminista Diana Russel, em um Tribunal Internacional Sobre Crimes Contra as Mulheres. Na ocasião, a intenção era caracterizar crimes cometidos contra mulheres, “definindo-o como uma forma de terrorismo sexual ou genocídio de mulheres” (MENEGUEL; PORTELLA, 2017, p. 3079).

Mesmo com números tão alarmantes, no entanto, muitos casos de estupro, violência psicológica contra mulheres e violência doméstica não são registrados oficialmente pelas vítimas. Isto pode indicar que o volume de casos é muito maior, mesmo se tratando de crimes que contam com legislação para defender e proteger essas vítimas.

A lei n° 11.340, conhecida popularmente como Maria da Penha, foi instaurada no país em 2006 com o objetivo de aumentar o rigor e a punição em casos de violência doméstica contra as mulheres. O nome é uma homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que foi vítima de violência doméstica por 32 anos. Seu marido, o autor dos crimes, tentou a matar duas vezes até que, na última tentativa, em 1983, a deixou paraplégica. Após inúmeras denúncias, Maria da Penha denunciou o Estado brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. A comissão considerou a justiça brasileira omissa no caso, o que levou à criação da lei.

Essa suposta subnotificação de casos de violência contra a mulher pode estar relacionada com o pensamento machista, misógino e retrógrado presente na sociedade brasileira. Outro levantamento realizado pelo Ipea,3 que entrevistou 3.180 brasileiros sobre a tolerância social em violência contra a mulher, indicou que 58% dos entrevistados concordam que ‘se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros’. Ou seja, há uma tendência social de culpabilização da vítima em muitos desses casos, uma característica da chamada cultura do estupro (KELLER et al., 2018).

Dado o exposto, é possível perceber como a violência de gênero é um assunto urgente no Brasil. A partir disso e entendendo a importância da imprensa na construção da cultura de uma sociedade, surgem alguns questionamentos: como a imprensa se comporta diante desse cenário? Os jornais assumem a responsabilidade social de diminuir o impacto desse machismo estrutural em casos de violência contra a mulher? As notícias são tratadas de forma humanizada? Tendo como principal pergunta de investigação “Quais são as fontes usadas na imprensa brasileira para noticiar a violência contra as mulheres?”, esta investigação analisa as fontes utilizadas em notícias de casos de violência contra a mulher no G1, o maior portal de notícias do Brasil.

O objetivo é entender, a partir de um estudo de caso, como o jornalismo brasileiro aborda a violência contra a mulher por meio das fontes usadas nas notícias de casos com esse tema. Além disso, busca-se entender o peso da voz feminina como fonte em notícias sobre violência contra a mulher e se as vítimas são ouvidas. Por fim, espera-se compreender se existe um padrão nas fontes utilizadas e se elas contribuem para uma abordagem humana dos casos.

Para isso, foram analisadas as fontes de notícias relacionadas à violência contra a mulher (estupro, violência doméstica, abusos, agressões, feminicídio) publicadas no portal G1 no mês de dezembro de 2017 – ano que compreende o período observado de aumento da violência de gênero no país de acordo com Atlas da Violência. As editorias correspondentes aos Estados de Roraima, Goiás, Mato Grosso, Rondônia e Espírito Santo foram as analisadas, já que dados do Ipea indicam que essas eram as regiões brasileiras mais violentas para mulheres naquele ano.

Na análise foram observadas as fontes e classificadas pelo crédito, categoria e grupo, definições apresentadas por Schmitz (2011). E, ainda, o gênero destas fontes. Também foi realizada uma análise de discurso com base no Manual do Jornalismo Humanizado4 – Violência contra a mulher, desenvolvido pela ONG feminista brasileira Think Olga.

Tipos de fontes no jornalismo diário

A qualidade do conteúdo jornalístico, especialmente o diário, está muitas vezes relacionada com as fontes ouvidas para uma reportagem, sendo a notícia, na verdade, o que foi dito por suas fontes, não uma expressão da opinião do jornalista (SIGAL, 1986). Além disso, a capacidade de ir atrás de boas fontes é o que mostra se um jornalista é competente no exercício da profissão ou não (SOUSA, 2005), já que é necessário ter uma relação madura com essas fontes e saber tirar desse relacionamento o melhor para a qualidade da notícia. Para Pinto (2000, p. 278), “as fontes são pessoas, são grupos, são instituiçães sociais ou são vestígios – falas, documentos, dados – por aqueles preparados, construídos, deixados”, estando a relação entre fonte e jornalista pautada no interesse mútuo. As vantagens de que alguma história se torne ou não pública também faz parte dos contornos dessa relação (GOMIS, 1991).

As fontes, apesar de já terem causado polêmicas em momentos históricos do jornalismo, são pouco estudadas nos dias de hoje – mesmo que, de acordo com Gans (2004), para um jornalista, todas as pessoas são potencialmente uma fonte. Autores clássicos criaram denominações que continuam sendo utilizadas nas redações de todo mundo. E algumas dessas classificações foram utilizadas nesse estudo.

Schmitz (2011) é um pesquisador que, recentemente, retomou os estudos sobre a taxonomia das fontes. Na sua pesquisa, ele organizou as fontes em cinco tipos: Categoria, Grupo, Ação, Crédito e Qualificação, conforme figura abaixo.


Figura 1
Matriz de classificação das fontes de notícias

Para esta investigação, o interesse está nas definições de Categoria, Grupo e Crédito, pontos estes que foram analisados nas notícias selecionadas e serão brevemente explorados a seguir.

Categorias

As categorias são definidas como fontes Primárias e Secundárias (SCHMITZ, 2011). A primeira “fornece diretamente a essência de uma matéria, como fatos, versões e números, por estar próxima ou na origem da informação. Geralmente revela dados ‘em primeira mão’” (SCHMITZ, 2011, p. 24). Os depoimentos de fontes primárias podem ser usados para confrontar os de fontes secundárias.

A fonte secundária não é vista com muita frequência no jornalismo diário. Pois, de acordo Schmitz (2011), ela tem papel de contextualização da história, contribuindo para interpretar uma matéria ou, mesmo, complementar as informações apresentadas por uma fonte primária: “é com quem o repórter repercute os desdobramentos de uma notícia (suíte)” (SCHMITZ, 2011, p. 24).

Grupo

No separador Grupo, estão as fontes oficiais ou não oficiais (SCHMITZ, 2011). As fontes oficiais são aquelas relacionadas a órgãos públicos como polícia, governo, poderes e Estado. Estas são as fontes preferidas por repórteres por não possuírem, inicialmente, intenções secundárias e ocultas além do interesse em informar a população (SCHMITZ, 2011).

Apesar disso, mesmo sendo as mais procuradas pelos jornalistas, as fontes oficiais podem possuir interesses em ocultar informações com o objetivo de manter a integridade das instituições sendo, dessa forma, possivelmente mais tendenciosas (ROSSI, 2013). Ainda segundo a análise de Rossi (2013), as fontes oficiais são, muitas vezes, as únicas consultadas na construção de uma notícia por conta do prazo de entrega de uma matéria. No jornalismo online e diário, objeto de estudo nesta investigação, isso se aplica com ainda mais regularidade. Já as fontes não oficiais são as Institucionais, Empresariais, Individuais, Testemunhas, Documentos de referência e especialistas (SCHMITZ, 2011).

Crédito

Já o crédito das fontes determina quando elas são identificadas ou não identificadas, sendo o sigilo negociado entre o jornalista e a fonte (SCHMITZ, 2011). Neste caso, a fonte pode revelar sua identidade ao compartilhar a informação, prática conhecida no meio jornalístico como on the record. Já o anonimato, ou off the record, acontece quando a fonte tem o objetivo de compartilhar a informação, mas, por algum motivo revelado (ou não), prefere não dizer na notícia a sua identidade ou, ainda, revelar algo de forma extraoficial “com a intenção clara de não divulgar ou, se for, sem a indicação de quem fez a declaração (on background) nem a função que exerce (on deep background)” (SCHMITZ, 2011, p. 29).

Questões de gênero no jornalismo

A consciência de gênero surgiu no movimento feminista europeu, nos anos 1700, especialmente na França e na Inglaterra (BINGEMER, 1994). O mote da Revolução Francesa ‘Liberté, égalite, fraternité (liberdade, igualdade e fraternidade)’ começou a ser questionado, afinal, era um conceito de liberdade limitado, por não considerar o direito das mulheres. O movimento feminista se fortaleceu de forma organizada ao longo dos anos a partir desse questionamento e, também, como forma de apoio aos movimentos de luta de classe, como pela abolição da escravatura.

Simone de Beauvoir, filósofa francesa e uma das grandes referências do movimento feminista, ressalta que até mesmo no vocabulário a mulher aparece como negativo e o homem neutro. Afinal, usamos “os homens” para nos referir aos seres humanos. Assim, a mulher é entendida na sociedade como “o outro”, dando uma percepção negativa e de limitação, sem qualquer tipo de reciprocidade (BEAUVOIR, 1980). Foi em 1949 que a filósofa, ao lançar o livro ‘O Segundo Sexo’, levou as questões de gênero para um debate político. A célebre frase “não se nasce mulher, torna-se” (BEAUVOIR, 1980. p. 9), é considerado o início da reflexão feminista a partir de uma perspectiva desassociada do sexo biológico. Foi a partir daí que distinção entre sexo, em uma ótica biológica/natural e gênero, como uma construção sociocultural, começou a ser discutida (BUTLER, 2003). Assim, o gênero passou a ter lugar sob “uma perspectiva crítica sobre a produção dos saberes em diversas disciplinas das ciências sociais” (AMÂNCIO, 2003, p. 687).

Apesar da luta do movimento feminista existir já há tanto tempo, as mulheres de hoje seguem sofrendo com imposições de poder e um mundo cada vez mais dominado pelo machismo patriarcal, a partir de uma supremacia psicológica e social que tem como objetivo dominar corpos e ideias de mulheres. O fim do machismo e da misoginia não foi vencido, mesmo com tantos anos de luta. Tanto que, diariamente, deixa marcas, seja por meio de disparidade salarial no mercado de trabalho, minimização da voz feminina em posições de poder, relações amorosas abusivas, violência doméstica, violação sexual e, até mesmo, crimes que resultam na morte de mulheres. Na mídia, vemos diariamente essa realidade sendo retratada.

No Brasil, os primeiros registros sobre a luta de gênero datam dos anos 1800, com a publicação de três obras da autora Nísia Floresta Brasileira Augusta: Conselhos à Minha Filha, em 1842; Opúsculo Humanitário, em 1853 e A Mulher, em 1856. Além disso, Nísia realizou a tradução para português de outro clássico feminista, Uma reivindicação pelos Direitos da Mulher (Vindication of the rights of women), de Mary Wollstonecraft, obra de 1792 (COSTA & SARDENBERG, 1994). A imprensa teve, inclusive, um papel central no nascimento do movimento feminista no Brasil. Em 1822, o jornal Sentinela da Liberdade, publicação da capital de Pernambuco, Recife, publicou um manifesto que teve a assinatura de cerca de 120 mulheres exigindo direitos de fazer parte da “partilha de glória do Brasil” (TELLES, 2004).

Já em 1975, outro grande marco do movimento feminista brasileiro aconteceu por meio da imprensa. O jornal Brasil Mulher teve a sua primeira edição publicada em 9 de outubro daquele ano, apresentando um apanhado da Primeira Conferência Mundial sobre as mulheres, evento promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Cidade do México. Na ocasião, o evento declarou 1975 como o Ano Internacional das Mulheres e, ainda, 1976 a 1985 como a década das mulheres.

Já no Brasil dos dias de hoje, de acordo com a professora Inmaculata Díaz Narbona (2017), em entrevista para Feldeman (2017), a presença de mulheres como pauta na imprensa está muito associada com violência, tendo na maioria dos casos as mulheres como vítimas de algum crime. Ou, ainda, quando associadas a assuntos polêmicos e, muitas vezes, questionados fortemente pela sociedade conservadora.

Sangue e controle do corpo feminino são sempre notícia e, infelizmente, são os assuntos mais divulgados na grande imprensa. Quando há algum debate sobre o aborto também encontramos mais sobre a mulher nos veículos de comunicação. A prostituição também é um tema que chama atenção dos meios (NARBONA, 2017, apudFELDEMAN, 2017, p. 11).

Outro ponto de atenção está no fato de que os textos que abordam essas temáticas são simples e com conteúdo apenas descritivos sobre os fatos (NARBONA, 2017), ou seja, sem aprofundamento. Além disso, enquanto fontes, as mulheres têm pouco espaço em assuntos especializados como política e cargos de chefia, até por conta da pouca representatividade delas nesses papéis – apenas 34% dos cargos de lideranças sênior5 e 15% dos espaços políticos6 com tomada de decisão são assumidos por mulheres no Brasil. O eleitorado, no entanto, conta com 52,5% de mulheres. Já em temas considerados feminizados as mulheres são mais presentes, como ao abordar pautas relacionadas com questões afetivas e familiares, moda e beleza (NARBONA, 2017).

Em relação à linguagem, na grande mídia, esta não costuma ser inclusiva (NARBONA, 2017). Desta maneira, o jornalismo naturaliza certas falas, como a escolha de dizer “forçar sexo no lugar de estupro, crime passional ao invés de feminicídio, cantada e não assédio” (LARA et al. 2016. p. 197). Essa narrativa, que naturaliza crimes contra mulheres, é reflexo de um valor cultural enraizado na sociedade que naturaliza esses abusos que, “ao ser transmitido pela mídia e repetido constantemente, acaba se estranhando ainda mais em nossas vidas – e produzindo efeitos muito reais” (LARA et al. 2016. p. 197).

A violência contra a mulher retratada no jornalismo

A partir do exposto, é possível perceber que o jornalismo pode ter práticas pouco adequadas para tratar a violência contra a mulher, sugerindo que a mídia reflete o comportamento da sociedade. Além disso, o jornalismo diário que retrata a violência no Brasil, é dependente das fontes oficiais – nesse caso, na maioria das situações, as polícias militar, civil ou, mesmo, guarda municipal. E esse “vício” resulta em um jornalismo sem crítica alguma à segurança pública (RAMOS; PAIVA, 2007).

Por conta disso, o jornalista fica dependente também da agenda dessas autoridades policiais, que acabam por não priorizar temas e casos que podem não ser considerados importantes. Desta maneira, as possibilidades do jornalismo de produzir reportagens que questionem casos de violência contra a mulher e que mostram um retrato mais amplo, tanto das histórias e dos personagens, quanto da situação no Brasil, de forma geral, também são diminuídas A mídia poderia “contribuir para que antigas concepções socioculturais sejam modificadas, também podem favorecer a naturalização de uma cultura patriarcal, na qual o homem tem direito de subjugar a companheira” (SOUZA; OLIVEIRA, 2015, p. 1), sendo assim um espaço essencial para produzir a mudança pela qual o movimento feminista luta.

A imprensa é ainda responsável por definir a agenda de debates políticos e sociais, monitorar políticas públicas e, também, influenciar a opinião da sociedade. Por isso, o movimento feminista, especialmente, defende fortemente que essa pauta esteja em voga. De acordo com o Dossiê Violência contra as Mulheres7, a imprensa deve abordar a violência de gênero mostrando sua real proporção regionalmente e no país todo, divulgar e acompanhar os serviços públicos de apoio e pesquisar mais sobre causas e possíveis soluções.

Blay (2003), em uma pesquisa sobre a abordagem da mídia em casos de violência de gênero, percebeu que, na década de 1980, existia uma forte tendência de culpabilização da vítima. Nestes contextos, os crimes eram justificados como tentativas frustradas de romper relacionamentos. Esse cenário mudou um pouco nos anos 2000 quando, de acordo com a pesquisadora, “o noticiário se tornou mais investigativo, relativamente neutro e com certa tendência a questionar julgamentos que facilitavam a fuga dos réus” (BLAY, 2003, p. 93).

Na veiculação desses casos, a linguagem é mais um fator que tem grande influência. Por conta disso, a ONG brasileira Think Olga desenvolveu um manual de jornalismo humanizado com dicas para ‘jornalistas e veículos que desejam limpar sua comunicação de preconceitos’. Entre os temas abordados, um dos capítulos trata da violência contra a mulher. O manual apresenta formas humanizadas de abordagem para casos de estupro, violência doméstica e feminicídio. Entre as boas práticas estão: não romantizar os atos de violência nem os agressores, não ter medo de usar a palavra ‘estupro’ e não julgar as vítimas por seu comportamento.


Figura 2
Exemplo de romantização de um crime

Figura 3
Exemplo de romantização de um crime

Figura 4
Exemplo de abordagem recomendada

Figura 5
Exemplo de abordagem recomendada

Análise dos dados

Para essa pesquisa, foram analisadas as notícias relacionadas à violência contra a mulher no mês de dezembro de 2017 em cinco editorias do Portal G1. No total, foram documentadas 73 matérias, uma média de 14 por editoria, um total de 2,3 notícias por dia. Dessas, apenas 41 tiveram o nome do jornalista revelado, sendo 19 mulheres e 22 homens. Em todas essas editorias, foram contabilizadas 118 fontes, uma média de 1,6 por publicação.

É importante destacar que, entre as cinco editorias, apenas na editoria Rondônia todas as notícias tinham apenas uma fonte. Todas elas eram oficiais (Polícia Militar e assessoria de imprensa), primárias e não identificadas. Em apenas duas delas nenhuma fonte foi identificada. Em seis delas, a vítima foi ouvida.

Em grande parte das notícias analisadas, as fontes eram oficiais, primárias e não identificadas, provenientes da assessoria de imprensa das polícias locais. No total, 84 fontes eram oficiais e apenas 34 não oficiais. Dentre as não oficiais, foram identificadas testemunhas dos casos, as vítimas e, na maioria das reportagens analisadas, parentes e familiares das vítimas.


Gráfico 1
Grupos das fontes analisadas.

Figura 6
Fonte oficial, primária e identificada

As fontes primárias também foram maioria. No total, 104 classificadas. Já as fontes secundárias, classificação usada para familiares das vítimas não diretamente envolvidos, testemunhas “distantes” dos casos e especialistas, somaram 14.


Gráfico 2
Categorias das fontes analisadas.

Em relação ao crédito das fontes, a maioria delas, 78, foi classificada como anônima. Já as outras 38 tinham identificação. Entre as fontes identificadas ou aquelas anônimas que sugerem de alguma forma o gênero, 23 são homens e 28 mulheres. Entende-se como relevante destacar que, entre essas 28 mulheres, 6 eram as vítimas. Em nenhuma das matérias analisadas o suspeito da agressão/crime foi ouvido pelo repórter ou pelo veículo. Em alguns casos, o defensor ou um familiar do acusado foram as fontes.


Gráfico 3
Créditos das fontes analisadas.

A abordagem do jornalista ao tratar do assunto também foi analisada. Em geral, as notícias factuais eram curtas e diretas, o que pode justificar o grande uso de fontes primárias e oficiais. Nas notícias de repercussão, foram observadas mais variedade de fontes, fontes identificadas e mais aprofundamento nas histórias.

Apenas duas notícias continham aprofundamento sobre o problema da violência contra a mulher no Brasil. Não foram percebidas, conforme sugerido pelo Manual do Jornalismo Humanizado, informações de apoio às vítimas e incentivo à denúncia – o Brasil possui uma linha de telefone para denúncias de violência doméstica, a Central de Atendimento à Mulher: Ligue 180. Em apenas uma matéria essa ação foi encontrada. Porém, ela não estava em uma orientação do jornalista ou do veículo, mas, sim, na fala da fonte.


Figura 7
Tentativa de feminicídio não abordada pelo jornal desta maneira. A escolha foi pelo uso do termo ‘homicídio

Não foram percebidos termos ou linguagem que romantizam o abuso de mulheres ou amenizam os crimes relatados – como, por exemplo, ‘sexo forçado’. Porém, o termo ‘feminicídio’ foi usado em apenas duas matérias, mesmo que outras notícias sugerissem se tratar desse crime.

Considerações finais

As violências física, sexual, moral, patrimonial e psicológica contra a mulher são temas urgentes, atuais e que devem ser abordados em diferentes espaços. As estatísticas mostram um cenário cada vez mais preocupante não só no Brasil, mas em diversos países. O agressor, na maioria dos casos conhecidos, está na casa da vítima. Ele usa do amor, paixão e cuidado para justificar atos ditos, muitas vezes, como impulsivos e apaixonados. Ou, mesmo, passionais. Essas ações, no entanto, independente da justificativa, podem marcar a vida de uma mulher, seus filhos e familiares para sempre. Esse ‘amor’ pode matar. E muitas vezes mata.

A simples punição dos agressores não parece contribuir para que esse comportamento acabe. O movimento feminista defende, já há muitos anos, a importância de falar sobre essas violências e conscientizar as pessoas para que mais mulheres consigam identificar situações de agressões e, assim, procurem por ajuda. A mídia, como defendem as feministas, tem papel fundamental nesse processo de alerta e de mudança da sociedade. Por isso, essa pesquisa analisou a abordagem dada a casos de violência contra a mulher em cinco editorias do maior portal de notícias online do Brasil, o G1, por meio de suas fontes.

Após pesquisa teórica e análise do objeto empírico, foi possível concluir que os casos são tratados sem distinção ou algum tipo de destaque para a gravidade desse cenário. Também não há um trabalho de conscientização para a importância das denúncias ou diminuição desse tipo de crime. As notícias, em grande maioria, são breves e utilizam principalmente as fontes oficiais para relatar os fatos. Vale ressaltar que as editorias analisadas abordam temas e reportagens factuais, sem que existam muitos exemplos de reportagens de investigação ou com grande aprofundamento.

A palavra ‘feminicídio’ foi usada em apenas duas notícias entre as analisadas, mesmo sendo um crime previsto na lei brasileira para o homicídio contra mulheres quando a motivação for o gênero da vítima. Apesar disso, não foi identificada em nenhuma das notícias algo que sugerisse a culpabilização da vítima pelo crime sofrido. Também não foram percebidas análises de comportamento de forma a desmerecer a mulher como vítima. As palavras estupro, abuso e assédio também foram usadas, sem tentativa de minimizar ou romantizar tais atos.

Dado o exposto, e a partir do recorte dessa pesquisa, pode-se concluir que o jornalismo diário online não se propõe a promover mudanças estruturais na sociedade. Isso pode ser percebido pela escolha de priorizar o uso de fontes oficiais, que impedem questionamentos sobre a segurança pública ou ações relacionadas com prevenção desses crimes. Dar a notícia correta e com velocidade parece ser a escolha principal.

Já ao analisar a partir do viés da humanização das notícias, foi possível identificar atitudes consideradas positivas nas matérias analisadas. Uma delas foi o uso, na grande maioria delas, de termos recomendados para a abordagem de crimes de gênero. Apesar disso, é possível identificar uma necessidade de trabalhar de maneira mais ativa a favor da conscientização de crimes contra mulheres, com incentivo à denúncia e com abordagem de fontes diferenciadas para analisar o fato que está sendo relatado.

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Notas

1 Atlas da Violência 2020. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/atlas-da-violencia/. Acesso em: 10 de janeiro de 2021.
3 SIPS - Sistema de Indicadores de Percepção Social. Disponível em: http://ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf. Acesso em: 24 de janeiro de 2021.
4 Disponível em: https://issuu.com/thinkolga/docs/minimanual_1_efe8621a394e2c. Acesso em: 30 de outubro de 2023.
5 Fonte: Participação de mulheres em cargos de diretoria no Brasil aumenta. Disponível em: https://diariodocomercio.com.br/dia-internacional-da-mulher/participacao-de-mulheres-em-cargos-de-diretoria-no-brasil-aumenta/. Acesso em: 24 de janeiro de 2021.
6 Fonte: Especial mulheres na política. Disponível em: https://www.brasildefators.com.br/2020/07/30/especial-mulheres-na-politica. Acesso em: 24 de janeiro de 2021.
7 Fonte: Dossiê violência contra a mulher. Disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/o-papel-da-imprensa/. Acesso em: 20 de dezembro de 2020.

Autor notes

Editora responsável: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol

Declaração de interesses

Conflito de interesse

A autora confirma que não há conflito de interesse.



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