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A visão da grande mídia sobre a revolução Fintech
La visión de la prensa dominante sobre la revolución Fintech
The mainstream media view of the Fintech Revolution
Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vol. 46, e2023203, 2023
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM)

Arena


Recepção: 16 Junho 2021

Aprovação: 27 Outubro 2023

DOI: https://doi.org/10.1590/1809-58442023203pt

Resumo: As fintechs têm sido apresentadas pela grande mídia internacional como revolucionárias e uma ameaça à indústria bancária tradicional. Este artigo explora como essa imagem é construída. Concebidas para ampliar o acesso ao sistema bancário, as fintechs deveriam seguir parâmetros de responsabilidade social e preencher uma lacuna de mercado deixada pelos bancos. Escolhemos analisar a mídia por seu caráter de barômetro da percepção e compreensão de lógicas específicas (LOK, 2010). Analisamos artigos do New York Times e do Financial Times durante 24 meses. Os artigos mostraram que a mídia, ao tratar das fintechs, utiliza expressões como “ameaça”, “competição”, “ruptura”, “revolução” e, com bem menos ênfase, as consequências sociais. Nossa análise encontrou um discurso ambíguo de racionalização de mercado em uma tentativa de alinhamento das práticas à Responsabilidade Social Corporativa (RSC) em uma indústria em construção.

Palavras-chave: Fintech, Setor financeiro, Tecnologia, Mídia, RSC.

Resumen: Los grandes medios de comunicación internacionales han presentado a las fintech como revolucionarias y una amenaza para el sector financiero tradicional. Este artículo explora cómo se construye esa imagen. Diseñadas para ampliar el acceso al sistema bancario, las fintechs deben seguir parámetros de responsabilidad social y llenar un vacío de mercado dejado por los bancos. Optamos por analizar los medios por su carácter de barómetro de percepción y comprensión de lógicas específicas (LOK, 2010). Analizamos artículos del New York Times y el Financial Times durante 24 meses. Los artículos mostraron que los medios, cuando se trata de fintechs, utilizan expresiones como “amenaza”, “competencia”, “ruptura”, “revolución” y, con mucho menos énfasis, las consecuencias sociales. Nuestro análisis encontró un discurso ambiguo de racionalización del mercado en un intento de alinear las prácticas con la Responsabilidad Social Corporativa (RSE), en una industria en construcción.

Palabras clave: Fintech, Sector financiero, Tecnología, Medios de comunicación, RSE.

Abstract: International mainstream media have presented fintech as revolutionary and a threat to the traditional banking industry. This article explores how that image is constructed. Designed to expand access to the banking system, fintechs should follow social responsibility parameters and fill a market gap left by banks. We chose to analyze the media for its character as a barometer of perception and understanding of specific logics (LOK, 2010). We analyzed articles from the New York Times and the Financial Times for 24 months. The articles showed that the media, when dealing with fintech, uses expressions such as “threat”, “competition”, “disruption”, “revolution,” and, with much less emphasis, social consequences. Our analysis found an ambiguous discourse of market rationalization in an attempt to align practices with Corporate Social Responsibility (CSR) in an industry under construction.

Keywords: Fintech, Financial Sector, Technology, Media, CSR.

Introdução

A visão de que a fintech é algo capaz de “revolucionar o mundo” é comum hoje em dia. Acrônimo para tecnologia financeira (do inglês financial + technology), as fintechs foram concebidas para preencher uma lacuna que os bancos não conseguiam preencher, tanto na inclusão de usuários à margem do sistema financeiro, quanto na redução de custos em taxas de juros, tarifas e encargos para clientes habituais. Neste artigo, investigamos as origens desta visão.

Ao reduzir os custos operacionais, as fintechs também foram identificadas como um instrumento de inclusão financeira, contribuindo para um aumento de 18 pontos percentuais desde 2011 na participação de adultos que possuem conta bancária, de 51% para 69% registrados em 2017 (CASTILLA-RUBIO, ZADEK e ROBINS, 2016; DEMIRGÜÇ-KUNT et al., 2018).

Qualificada sob diferentes adjetivos, a indústria encontra legitimidade no discurso da mídia. Em muitos artigos jornalísticos constatamos que as fintechs são associadas a adjetivos e termos exagerados - disrupção, revolução, boom, hype1, ameaça - em um discurso ambíguo que procura alinhar racionalização de mercado e práticas de responsabilidade social corporativa (RSC), buscando legitimar uma indústria em construção (HERZIG e MOON, 2013).

Este discurso, combinado com a rápida evolução das plataformas de tecnologia financeira, tem atraído a atenção da comunidade financeira nacional e internacional, tanto pelos seus aspectos positivos como negativos. Os aspectos positivos enfatizam a redução de custos e o aumento do acesso, enquanto os negativos estão, em princípio, relacionados ao ritmo acelerado de mudanças que torna mais desafiadora a função das autoridades monetárias e dos bancos centrais (BASEL COMITTEE, 2017).

A mídia tem grande poder de influenciar a opinião das pessoas e estabelecer a agenda de prioridades públicas (WANTA, GOLAN e LEE, 2004). Nosso objetivo é descrever como a grande mídia internacional constrói a imagem social da fintech. Como Herzig e Moon (2013, p. 1870), “utilizamos os conceitos de responsabilidade social corporativa (RSC), que se refere às respostas das empresas às expectativas da sociedade e ISC (irresponsabilidade social corporativa)”.

Nossa análise é baseada em uma amostra de notícias factuais e reportagens de sites de jornais. Concentramo-nos em dois grandes jornais internacionais: o New York Times (NYT) e o Financial Times (FT), escolhidos por sua importância na indústria da mídia e influência na opinião pública global, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Em uma primeira busca, pesquisamos a expressão “fintech” no período específico - de 1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2017. Isso nos trouxe 102 resultados no NYT e 935 no FT. Aplicando filtros, chegamos a uma amostra de 272 unidades (192 do FT e 80 do NYT) no total.

Nas próximas seções, discutiremos os conceitos de RSC, ISC e sua relação com o mercado financeiro, fintechs e mídia. Em seguida, apresentamos métodos, resultados, análises e considerações finais.

RSC, mercado financeiro e fintech

Entre as muitas abordagens de RSC encontradas na literatura por Gond e Moon (2011), está a expectativa de que as empresas sejam responsáveis, tenham a capacidade de compensar externalidades negativas e contribuir para o bem-estar social. Todas elas parecem ter sido incorporadas à história contada pela mídia para construir imagens de organizações.

Ao longo do tempo, o setor financeiro aprendeu a adotar medidas para defender sua imagem pública, evitando ser considerado como uma “indústria suja” (STANLEY et al., 2014). No entanto, a trajetória do setor é longa e repleta de atitudes que mancharam sua reputação. Edelman (2012) descobriu que os serviços bancários e financeiros são as indústrias menos confiáveis no que se refere a “fazer a coisa certa”. A má reputação parece ter sido exacerbada pelas moratórias de hipotecas subprime nos EUA em 2007.

Stanley et al. (2014) mostra como a mídia pode manchar a imagem do setor bancário. Através de uma análise retórica de seu discurso, os autores identificam três argumentos principais por trás da estigmatização dos bancos de investimento: “os banqueiros estão moralmente contaminados porque a sua riqueza é excessiva; porque a sua riqueza não é conquistada e porque são egoístas.” (STANLEY et al., 2014, p. 271). Roulet (2015) discute a difusão desse estigma na indústria financeira.

Fintechs, RSC e mídia - qual a racionalidade por trás dessa relação?

A forma como a mídia está tratando dos aspectos de RSC relacionados às fintechs é uma preocupação neste estudo. Como o assunto ainda está em sua infância, não há pesquisas conhecidas que relacionem os três temas. Em nossa busca no banco de dados Web of Science, considerando os últimos dez anos (desde que o tema fintech começou a ser discutido), encontramos um estudo (ZAVOLOKINA et al., 2016) que faz uma ampla revisão sobre os temas tratados pela mídia ao divulgar notícias sobre fintechs, mas nenhum foi encontrado relacionando RSC, fintech e mídia.

O estudo de Zavolokina et al. (2016) apresentou uma vasta lista de tópicos, que emergiram da análise de artigos de mídia sobre fintechs no período de 2010 a 2015. De 2014 a 2015, o tópico da disrupção ganhou força: a fintech foi relatada como uma “grande disruptora” do setor bancário, ao afetar as formas tradicionais de lidar com dinheiro. Da mesma forma, o tópico da regulamentação, que havia surgido em 2013, foi discutido juntamente com o papel do regulador, possibilidades de adaptação e impactos das fintechs no sistema financeiro geral.

De acordo com Herzig e Moon (2013), diferentes racionalidades podem ser identificadas ao analisar o discurso de RSC construído pela mídia, quando referente ao mercado financeiro tradicional:

1) a racionalização de mercado, que é o ajuste entre RSC, estratégia de negócios e mercados; 2) moralização e liderança ética como vitais para a conduta empresarial responsável; 3) a reconceituação e profissionalização da RSC e dos empresários para aumentar os negócios responsáveis e prevenir ISC, e 4) reestruturação da economia política como vital para controlar a ISC e fomentar a RSC. Alguns deles podem ser encontrados na literatura acadêmica e profissional sobre fintech (HERZIG e MOON, 2013, p. 1871).

A racionalidade de mercado também pode ser identificada no discurso de Yoon et al. (2016) que identificaram um papel crucial da fintech na facilitação do acesso aos usuários, além da redução de custos e melhoria da gestão e serviços.

Todos estes argumentos também estão associados à ISC. Por exemplo, para a racionalidade de mercado, o ISC é visto como resultado de uma “falha na integração da RSC”, ao invés de uma característica sistêmica do setor financeiro, seus líderes, gerentes ou do capitalismo (HERZIG e MOON, 2013, p. 1873). Seguindo essa lógica, alguns estudos alertaram sobre os efeitos negativos da fintech na sociedade. Yoon et al. (2016) relatam uma pesquisa feita pela Venture Scanner, em 2015, mostrando que 1.141 empresas de fintech em 53 países ao redor do mundo estavam administrando novos negócios que afetam as áreas financeiras existentes e tradicionais. Entre eles, o estudo menciona: banco pessoal e corporativo, pagamentos, gestão de ativos, remessas e seguros (YOON et al., 2016).

Em conclusão, a relação entre fintechs, RSC e mídia é complexa e ainda está em evolução. A racionalidade de mercado parece ser a mais dominante no discurso atual, mas há também preocupações com os possíveis efeitos negativos da fintech na sociedade. Mais pesquisas são necessárias para entender melhor esta relação e suas implicações para o futuro do setor financeiro.

Métodos e coleta de dados

Para conduzir a análise de conteúdo, coletamos uma amostra de notícias factuais e reportagens de sites de jornais. O objetivo foi perceber como as fintechs são apresentadas ao público, já que neste tipo de mídia o conteúdo deve ser, em princípio, isento de vieses e preconceitos, ainda que toda cobertura da mídia tenha seu viés ideológico. Concentramo-nos em dois grandes jornais internacionais: o New York Times (NYT) e o Financial Times (FT).

Escolhemos esses veículos com base em sua importância na indústria da mídia e influência na opinião pública global, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. De acordo com o Pew Research Center, o NYT é um dos três jornais diários de maior circulação nos Estados Unidos (junto com o The Wall Street Journal e o The Washington Post). O FT também é um líder global, um dos principais veículos de notícias financeiras e de negócios com 130 anos de existência.

A escolha por suas versões digitais segue uma tendência, identificada em Painter, Kristiansen e Schäfer (2018), que mudou drasticamente os cenários da mídia desde 1990, com a internet provocando um forte declínio do modelo de negócios financiado por publicidade para jornais impressos em todo o mundo.

De acordo com o Relatório Anual 2022 enviado à Securities and Exchange Commission, o NYT tem aproximadamente 11 milhões de assinaturas pagas em 225 países e territórios, dos quais 8,8 milhões são de produtos digitais (SEC, 2022). Do total de quase 29 milhões de leitores do FT, mais de 22 milhões consomem o conteúdo do diário britânico pela internet (site e aplicativo) (MGR, 2022).

Em uma primeira busca, procuramos a expressão “fintech” de artigos publicados entre 1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2017, período não coberto por Zavolokina et al. (2016). Essa busca trouxe 102 resultados no NYT e 935 no FT. Na primeira seleção, eliminamos artigos repetidos e irrelevantes.

Consideramos irrelevantes as notas e artigos muito pequenos nos quais, se o termo “fintech” fosse retirado, não faria diferença para o contexto e a construção da narrativa. Também eliminamos notícias de negócios muito específicas, envolvendo apenas uma ou duas empresas, como as que tratavam de compra de uma empresa ou lançamento de um produto ou serviço. Tal filtro eliminou 530 artigos do FT e 12 do NYT.

Na etapa seguinte, identificamos, lendo cada um dos artigos, que as expressões “ameaça”, “concorrência”, “revolução”, “disrupção”, “boom” e “hype” eram as mais frequentes. O termo investimento também foi levado em consideração - embora transações individuais não fossem nosso foco - já que algumas histórias desse tipo se mostraram significativas no universo fintech.

Muitos desses artigos restantes eram textos de opinião que consideramos de menor interesse para o propósito do artigo, exceto se fossem escritos por algum especialista, influenciador ou outra pessoa que pudesse trazer luz ao assunto o tivesse assinado. Por fim, ao descartar a maioria dos artigos de opinião, nossa amostra atingiu 272 (192 FT’s e 80 NYT’s) no total. Todos esses artigos foram então baixados para uma análise mais detalhada e classificados conforme segue na Tabela 1:

Tabela 1
Temas incidentes na amostra

Análise e resultados

Em nossa análise, descobrimos que a abordagem predominante relacionada à fintech é sobre investimento e criação de um campo de negócios. Essa é uma abordagem esperada em um canal de mídia como o Financial Times, que é produzido para um público empresarial e financeiro selecionado, mas surpreendente encontrá-lo no The New York Times, que deveria ser dirigido a um público mais diversificado.

A seguir, apresentamos trechos de alguns artigos que demonstram como os tópicos são apresentados ao público e permitem ter uma ideia dos principais temas e expressões recorrentes que encontramos em nossa análise.

Investimento - “Um grupo de líderes financeiros globais está pedindo aos reguladores, startups e empresas estabelecidas que ‘embarquem’ em colaborações marcantes que eles dizem reduzir as chances de implosão do ‘boom’ da tecnologia financeira. O grupo, convocado pelos organizadores do Fórum Econômico Mundial em Davos, argumenta em um documento publicado na terça-feira que há uma “necessidade urgente” de fazer mais para garantir que o rápido crescimento das fintechs não se torne um risco para a “estabilidade sistêmica.” (Laura Noonan - FINANCIAL TIMES: Finance leaders call for collaboration on fintech development - April 19, 2016). Link: https://www.ft.com/content/0e992e84-056d-11e6-a70d-4e39ac32c284. Acesso em: 29 out. 2023.

A RSC alinhada com a racionalidade de mercado é utilizada para reivindicar do poder público medidas que preservem os negócios privados sob o argumento do potencial de investimentos.

Ameaça - “As fronteiras tradicionais da indústria da qual faço parte estão desaparecendo”, diz Ashok Vaswani, chefe do Barclays UK”. Martin Arnold - FINANCIAL TIMES: How finance is being taken over by tech - January 17, 2017). Link: https://www.ft.com/content/2f6f5ba4-dc97-11e6-86ac-f253db7791c6. Acesso em: 31 out. 2023.

O discurso da mídia é contraditório, escondendo a realidade do sistema bancário tradicional: diante de um novo competidor. Há um movimento de reposicionamento que pode (ou não) incluir a adoção de atitudes socialmente responsáveis dentro dos parâmetros da RSC, alinhadas com a racionalidade de mercado.

Competição - “(…) A Orchard oferecia aos investidores institucionais um serviço automatizado para analisar empréstimos e comprá-los a diferentes credores online. (…) No entanto, em julho, funcionários da SEC (Comissão de Valores Mobiliários) disseram considerar os empréstimos como títulos, impondo potencialmente um nível de supervisão mais rigoroso. (Randall Smith. NEW YORK TIMES - Nos bastidores da Orchard Platform, uma luta para inovar - 29 de maio de 2017). Link: https://www.nytimes.com/2017/05/29/business/dealbook/fintech-start-up-orchard-platform-wall-street.html.

A melhoria do nível de serviço parece evidente. O que a mídia não diz é se os custos também aumentarão, comportamento que poderia ser analisado como CSI, que é produto de uma falha na integração da RSC nas operações de mercado, pela ótica da racionalidade de mercado do CSI.

Revolução - (...) “Fintech”, é claro, é a abreviatura de tecnologia financeira, um termo abrangente para uma quase-revolução de novas tecnologias destinadas a perturbar partes do mundo financeiro, incluindo pagamentos, gestão de patrimônio, empréstimos, seguros e moeda”. (NEW YORK TIMES - Fintech Firms Are Taking on the Big Banks, but Can They Win? 6 de abril de 2016). Link: https://www.nytimes.com/2016/04/07/business/dealbook/fintech-firms-are-taking-on-the-big-banks-but-can-they-win.html. Acesso em: 31 out. 2023.

Travestida com o manto do modelo de RSC, a imagem “revolucionária” parece fornecer uma nova solução de inclusão financeira, ampliando o acesso de usuários excluídos. No entanto, sabe-se que facilitar o acesso a crédito para os excluídos, que não sejam capazes de quitar as dívidas, pode comprometer suas vidas ao invés de melhorá-las. A racionalidade de mercado parece não ser suficientemente forte para suportar as consequências reais das práticas financeiras.

Disrupção - “Os americanos na faixa dos 20 e 30 anos, dizem os analistas, oferecem um vislumbre do mercado bancário do futuro. “Seu relacionamento com o sistema financeiro é muito diferente - é eletrônico, por meio de smartphones”, disse Mark Zandi, economista-chefe da Moody’s Analytics. “Isso pode e será muito disruptivo para o sistema bancário” (Steve Lohr - THE NEW YORK TIMES: As more pay by smartphone, banks scramble to keep up - 18 de janeiro de 2016). Link: https://www.nytimes.com/2016/01/19/technology/upstarts-are-leading-the-fintech-movement-and-banks-take-heed.html. Acesso em: 31 out. 2023.

Na perspectiva da RSC, se esse tipo de “disrupção” pode ser positiva, também existem efeitos deletérios que poderiam ser previsíveis e evitados pela adoção de políticas públicas que protegessem públicos vulneráveis. Novamente, a mídia está apresentando apenas um lado da moeda, aplicando o discurso de RSC alinhado com a racionalidade de mercado. O ISC está omitido.

Boom - “O aumento dos empréstimos online ao consumidor na China gerou um próspero mercado negro de dados de usuários de origem ilícita. Praticamente inexistente no país há poucos anos, os empréstimos ao consumidor por meio de sites e aplicativos móveis se expandiram rapidamente nos últimos 24 meses, em meio a uma proliferação de fintechs que usam big data para avaliar o risco de crédito. Duas dessas empresas (...) concluíram ofertas públicas de ações em Nova York desde outubro, capitalizando o entusiasmo dos investidores pelas fintechs. No entanto, os preços de suas ações caíram depois que as autoridades chinesas lançaram uma repressão ao setor. Os reguladores chineses suspenderam a emissão de licenças para novos credores online”. (Gabriel Wildau | Yizhen Jia - FINANCIAL TIMES: China fintech lending boom fuels risks of data theft - 29 de novembro de 2017). Link: https://www.ft.com/content/2d2f6012-d4dc-11e7-8c9a-d9c0a5c8d5c9. Acesso em: 31 out. 2023.

O uso da expressão “boom” (no título) ressalta o forte crescimento do mercado fintech, jogando para segundo plano os danos causados pela especulação e as assimetrias de informação, contradizendo postulados da RSC.

Hype - “...Desde o início do ano, os céticos se perguntam se a bolha das fintechs está a rebentar. Os críticos que argumentam que tem sido muito exagerado atribuir potencial às empresas digitais emergentes para perturbar seriamente a indústria de serviços financeiros causaram uma crise no Lending Club, o maior credor online dos EUA. As ações de muitos dos maiores credores peer-to-peer foram atingidas por uma combinação corrosiva de crescente inadimplência por parte dos mutuários e diminuição do apetite dos investidores pelos seus empréstimos, bem como preocupações sobre lapsos de governança e uma iminente repressão regulamentar”. (Martin Arnold - FINANCIAL TIMES: Five reasons why fintech has substance as well as hype - June 20, 2016). Link: https://www.ft.com/content/32ce4bfe-33a8-11e6-bda0-04585c31b153. Acesso em: 31 out. 2023.

A expressão “hype” parece ter uma conotação negativa, pois é frequentemente contrastada com “realidade” (ZAVOLOKINA et al., 2016). Neste trecho, o discurso da mídia é ambíguo. Não se alinha à reestruturação da economia política como vital para controlar o ISC e promover a RSC, como seria de supor. No discurso acima, vemos o que Herzig e Moon (2013) chamam de racionalização de mercado. A justificativa da prática é construída a partir da expectativa de que as “correções” são necessárias para manter o negócio no caminho certo, respeitando a sociedade.

Social/Mercado de trabalho

“Por décadas, o Walmart tem sido criticado pela forma como trata sua força de trabalho, incluindo baixos salários e criação de horários imprevisíveis. Agora, o gigante varejista está tentando aliviar parte da tensão financeira de seus funcionários, permitindo que eles recebam salários antes de seu próximo dia de pagamento (usando) um aplicativo para acessar uma parte dos salários pelas horas que já trabalharam” (Michael Corkery - NEW YORK TIMES: Walmart Will Let Its 1.4 Million Workers Take Their Pay Before Payday”- December 13, 2017). Link: https://www.nytimes.com/2017/12/13/business/walmart-workers-pay-advances.html. Acesso em: 31 out. 2023.

A abordagem social é rara na cobertura de fintech da mídia tradicional. Encontramos apenas cinco artigos tratando de temas como o tipo de profissional que a indústria fintech está procurando ou acusações sobre a cultura do local de trabalho que refletem uma discussão mais ampla sobre o tratamento a mulheres em startups de tecnologia do Vale do Silício. Acima, a abordagem da mídia enfoca RSC de moralização e liderança ética (HERZIG e MOON, 2013), ao destacar imperativos morais ou éticos do empregador.

Considerações finais

Os resultados deste estudo sugerem que a mídia está principalmente apresentando a fintech como uma oportunidade de investimento e um campo de negócios emergente, com alguns riscos percebidos. Também sugere que a indústria financeira tradicional vê as fintechs como ameaça, embora reconheça seu potencial como fonte de inovação.

A abordagem editorial enfatiza inovação, desenvolvimento tecnológico, perspectivas de lucro futuro e questões relacionadas com regulamentação e riscos de fraude. Mas pouco - ou quase nada - é explorado em termos dos impactos sociais, exceto algum foco no desemprego, o aspecto mais visível da adoção de novas tecnologias.

Se a RSC pode ser entendida como produto da onda de profissionalização e discricionariedade gerenciais (GOND e MOON, 2011), o discurso da mídia nos leva a supor que, com o “boom”, o novo setor fintech deseja ter uma boa avaliação do seu comportamento, encontrando nos meios de comunicação social um aliado a promover efeitos positivos. Assim, a mídia parece mimetizar a racionalidade do mercado financeiro tradicional sobre a RSE. De acordo com esta ideia, a RSE seria alcançada à medida que o progresso e a sustentabilidade financeira fossem alcançados. Desta forma, o desenvolvimento sustentável evitaria ICS não intencionais.

Referências

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CASTILLA-RUBIO, J. C.; ZADEK, S.; ROBINS, N. Fintech and sustainable development: assessing the implications. UNEP - United Nations Environment Programme, 2016. Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/fintech-and-sustainable-development-assessing-implications. Acesso em: 2 nov. 2023.

DEMIRGÜÇ-KUNT, A.; KLAPPER, L.; SINGER, D.; ANSAR, S.; HESS, J. The Global Findex Database 2017: measuring financial inclusion and the fintech revolution. Washington, DC: World Bank Group, 2018. Disponível em: https://microdata.worldbank.org/index.php/catalog/3238. Acesso em: 29 out. 2023.

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LOK, J. Institutional Logics as Identity Projects. Academy of Management Journal, v. 53, n. 6, 2010, p. 1305-1335.

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ZAVOLOKINA, L.; DOLATA, M.; SCHWABE, G. FinTech - What’s in a Name? In: 30thSeventh International Conference on Information Systems, Dublin, Ireland, 11 dec. 2016 - 14 dec. 2016, s.n.

Notas

1 Boom e Hype são termos em inglês muito utilizados no noticiário econômico (inclusive na imprensa brasileira) significando, respectivamente, incremento, aumento rápido (de atividades, de negócios), crescimento súbito; e publicidade, propaganda ou promoção espalhafatosa (Dicionário Michaelis Online).

Autor notes

Janes Rocha

Jornalista, editora assistente do Jornal da Ciência e do podcast O Som da Ciência, ambos veículos de divulgação científica da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (1985) pelas Faculdades Integradas Alcântara Machado/Faculdades Metropolitanas Unidas (FIAM/FMU). Mestra em Ciências/ Sustentabilidade (2021) pela Escola de Artes, Ciência e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP) com projeto de pesquisa na área de microfinanças. Tem experiência na cobertura jornalística de economia, ciência, tecnologia, meio ambiente e sustentabilidade. E-mail: janes.rocha@gmail.com

Tania Pereira Christopoulos

Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, coordenadora no Programa de Mestrado e Doutorado em Sustentabilidade e docente no curso de bacharelado em Marketing da Universidade de São Paulo. Pesquisadora com ênfase em microfinanças, negócios de impacto, tecnologia social e agricultura urbana. Possui Pós-Doutoramento em negócios sociais pela HEC Montreal e pela Universidade de Lisboa, PhD e mestrado em Gestão de Empresas pela Fundaçao Getúlio Vargas e London Business School. É bacharel em Administração pública pela EAESP Fundação Getúlio Vargas. Tem experiência na área de Administração e seus projetos de pesquisa estão relacionados aos temas Investimentos e Negócios de Impacto, Inovação e Microfinanças, Permacultura, Inovaçao e Marketing. E-mail: tchristo@usp.br

Editora responsável: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol

Declaração de interesses

Conflito de interesse

As autoras declaram que não há conflito de interesse.



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