Acessibilidade / Reportar erro

O poder criativo do net-ativismo de povos originários no Brasil1

El poder creativo del net-activismo de los pueblos originarios en Brasil

Resumo

Pesquisas indicam a disseminação, pelo jornalismo industrial, de estereótipos e visões discriminatórias que tendem a não favorecer políticas de afirmação de direitos dos povos originários no Brasil. Nota-se, no entanto, a escassez de estudos sobre como os povos originários têm explorado as tecnologias para se comunicar e enfrentar tais visões. Este artigo busca contribuir para suprir essa lacuna, ao apresentar os resultados de um estudo sobre o tema, que teve o objetivo de produzir conhecimento científico sobre a presença na rede social Instagram do coletivo de indígenas Mídia Índia, por meio da metodologia de análise da narrativa aplicada sobre 31 postagens selecionadas de 2019 que dialogam com estereótipos e visões pejorativas hegemônicas. Os resultados sugerem que o movimento se diferencia por dialogar de forma criativa com estereótipos, questionando-os de modo a suscitar reflexões e desconstruções.

Palavras-chave
Povos originários; Indígenas; Net-ativismo; Narrativa; Mídia Índia

Resumen

Las investigaciones indican la divulgación, por el periodismo industrial, de estereotipos y visiones discriminatorias que suelen a no favorecer políticas de afirmación de derechos de los pueblos originarios en Brasil. Se observa, sin embargo, la falta de estudios sobre cómo los pueblos originarios han explorado las tecnologías para comunicarse y enfrentar tales visiones. Este artículo busca contribuir para rellenar ese vacío, al presentar los resultados de un estudio sobre el tema, produciendo conocimiento científico sobre la presencia en la red social Instagran del colectivo de indígenas Mídia Índia, por medio de la metodología de análisis de la narrativa aplicada sobre 31 publicaciones de 2019 que dialogan con estereotipos y visiones despectivas hegemónicas. Los resultados indican que el movimiento se diferencia por dialogar de forma creativa con estereotipos, cuestionándolos de modo a promover reflexiones y deconstrucciones.

Palabras clave
Pueblos originarios; Pueblos indígenas; Activismo en red; Narrativa; Mídia Índia

Abstract

Studies show that the dissemination of discriminatory views and stereotypes by commercial media do not go towards defending the rights of native peoples in Brazil. However, there are few studies on how native peoples use technologies to communicate and deal with such discrimination. This article looks to fill this gap by presenting the results of a study on the subject, aimed at producing scientific knowledge about the indigenous network known as Mídia India and their presence on Instagram. We achieved this by conducting a narrative analysis of 31 posts from 2019 in response to stereotypes and hegemonic degrading views. The results suggest that this network differs itself by holding constructive dialogues about stereotypes and questioning them in order to generate serious thought and deconstruct the stereotypes.

Keywords
Native people; Indigenous people; Net-activism; Narrative; Mídia Índia

Introdução

As representações simbólicas de povos originários brasileiros construídas pelo jornalismo industrial têm sido cada vez mais objeto de estudos no país. Com metodologias como análise de enquadramento e discurso, as pesquisas indicam como se disseminam percepções e estereótipos que tendem a motivar atitudes e disposições de preconceito e discriminação, elementos que não favorecem políticas de afirmação de direitos.

Menos comuns são os estudos sobre como os povos originários têm explorado as tecnologias para se comunicar e enfrentar as visões discriminatórias predominantes sobre suas lutas e demandas em uma sociedade democrática. Organizando-se na forma de movimentos sociais e ativismos em busca de projeção no debate público, muitas etnias indígenas têm investido na criação, reativação e circulação de narrativas nas redes sociais, com diferentes articulações e ressignificações.

Buscando contribuir para suprir essa lacuna, este artigo descreve resultados de um estudo sobre o tema, que se dedicou a produzir conhecimento científico sobre a presença na rede social Instagram da Mídia Índia, coletivo de indígenas que, conforme sugerem os resultados, se diferencia por dialogar de forma criativa com visões estereotipadas disseminadas inclusive pelo jornalismo industrial, questionando-as a fim de suscitar reflexões e desconstruções.

No percurso do artigo, na primeira seção são desenvolvidas teorizações fundamentais. A segunda seção apresenta a metodologia de pesquisa e, a terceira, seus resultados e interpretação. Considerações finais sintetizam as contribuições do estudo ao avanço do conhecimento sobre a comunicação digital de povos originários no Brasil.

Teorizações fundamentais

Em suas decisões metodológicas (BRAGA, 2011BRAGA, J. L. A prática da pesquisa em comunicação: abordagem metodológica como tomada de decisões. E-Compós, v. 14, n. 1, p. 1-33, 2011.), os estudos sobre a comunicação de povos originários se beneficiam, direta ou indiretamente, do conceito de enquadramento, que pode ser definido como seleção de aspectos de uma dada realidade social, política e econômica que determinam uma forma particular de apropriação de sentido, perceptível como narrativa permeada por interpretações. Os quadros (frames) são capazes de ampliar ou reduzir a importância de ideias ou visões sobre assuntos específicos, contribuindo para que as pessoas pensem de determinadas maneiras sobre certos temas (ENTMAN, 2007ENTMAN, R. M. Framing bias: media in the distribution of power. Journal of Communication, v. 57, p. 163-173, 2007.).

As interpretações subjacentes aos enquadramentos podem desencadear posicionamentos à medida que tendem a condicionar o envolvimento dos indivíduos com determinados conteúdos e situações, além de influenciar as interações do cotidiano (MENDONÇA; SIMÕES, 2012MENDONÇA, R. F.; SIMÕES, P. G. Enquadramento: diferentes operacionalizações analíticas de um conceito. Rev. bras. Ci. Soc., v. 27, n. 79, p. 187-201, 2012.). Enquadramentos incluem e excluem: elementos ausentes, detectados por meio de sondagens comparativas, comunicam tanto ou mais que os presentes, ao revelarem o que vem a ser considerado desimportante (PORTO, 2004PORTO, M. P. Enquadramentos da mídia e política. In:RUBIM, A. A. C. (org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens. São Paulo: Unesp; Salvador: EdUFBA, 2004. p. 73-104.).

Encontram-se, nos periódicos especializados, artigos que operacionalizaram a detecção de enquadramentos e representações na cobertura jornalística de temas relacionados às demandas políticas de grupos indígenas no Brasil. Os estudos sugerem que estereótipos e visões pejorativas predominam. Silva e Raposo (2021)SILVA, M. P.; RAPOSO, M. M. Jornalismo e ideologia da cultura: os conflitos entre indígenas e ruralistas em Mato Grosso do Sul. Matrizes, v. 15, n. 1, p. 249-274, 2021. analisaram o jornal Correio do Estado, o principal veículo impresso do Mato Grosso do Sul, no qual foram registrados 420 dos 947 homicídios de indígenas no Brasil entre 1985 e 2014. A violência real parece acompanhar a violência simbólica. “Os enquadramentos apresentados buscam legitimar argumentos valendo-se de estereótipos e de preconceitos, historicamente construídos e ideologicamente sedimentados num discurso identitário, eivado de julgamentos morais, acerca dos genuínos sul-mato-grossenses” (SILVA; RAPOSO, 2021SILVA, M. P.; RAPOSO, M. M. Jornalismo e ideologia da cultura: os conflitos entre indígenas e ruralistas em Mato Grosso do Sul. Matrizes, v. 15, n. 1, p. 249-274, 2021., p. 271), entre os quais os indígenas não estariam incluídos.

Silva, Meneses e Demarchi (2020)SILVA, L. B.; MENESES, V. D., DEMARCHI, A. L. C. Resíduos sólidos e povos indígenas: enquadramentos da mídia no Brasil. Humanidades & Inovação, v. 7, n. 16, p. 482-493, 2020. analisaram a comunicação pública da Fundação Nacional do Índio (Funai), Governo do Estado do Mato Grosso do Sul e Agência Brasil, em contraste com mídias industriais de circulação regional e nacional de 2013 a 2017, buscando seus enquadramentos sobre o tema da destinação de resíduos sólidos em terras indígenas. O posicionamento de indígenas raramente esteve nos textos estudados, o que sugere desvalorização de suas demandas e menor protagonismo.

Mendes (2019, p. 404)MENDES, F. M. M. Jornalismo e representações: um estudo sobre os povos indígenas no G1/Acre (2013 a 2018). Moara, n. 54, p. 395-411, 2019. estudou as representações produzidas pelo jornalismo do Portal G1 no Estado do Acre e constatou que, com frequência, os indígenas são apresentados como pessoas que “vivem na pobreza, não têm trabalho e nem casa para morar” e são vítimas de preconceito porque são considerados incapazes.

Quintana e Santos (2019)QUINTANA, M. I.; SANTOS, E. M. Enquadramento midiático local em torno da luta indígena pela terra. In: FLORES, G. G. B. et al. (org.). Discurso, cultura e mídia: pesquisas em rede. v. 3. Santiago: Oliveira, 2019. p. 496-514. estudaram enquadramentos de jornais de Campo Grande-MS sobre a resistência de indígenas na luta pela posse de terras naquele Estado. Os resultados indicam proeminência de aspectos de conflito, hostilidade e ilegalidades de supostas invasões praticadas por indígenas, que supostamente prejudicariam o agronegócio.

Bezerra (2018)BEZERRA, A. A. S. Violações dos direitos dos povos indígenas: os meios de comunicação no caso Tupinambá. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 6, n. 1 p. 129-145, 2018. verificou a representação simbólica de indígenas em mídias baianas e de circulação nacional e indicou que os conteúdos tendem a naturalizar a violação de direitos e propagar visões dos indígenas como invasores de terras.

Nas redes sociais, tais visões são reproduzidas. Bonin, Kirchof e Ripoll (2018)BONIN, I. T.; KIRCHOF, E. R.; RIPOLL, D. Disputas pela representação do corpo indígena no Twitter. Rev. Bras. Estud. Presença, v. 8, n. 2, p. 219-247, 2018. estudaram postagens de internautas comentando, no Twitter, o Acampamento Terra Livre, mobilização anual da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, em 2017. Muitos comentários acusaram o movimento de invadir o espaço público e ironizaram sua autenticidade supostamente corrompida pelo uso de bens de consumo como roupas e calçados industrializados, celulares, câmeras e automóveis.

Quando os movimentos indígenas exploram a tecnologia para projetar suas demandas, vão encontrar e precisam lidar com tais estereótipos e visões pejorativas, de forma planejada ou não. A construção e veiculação de enquadramentos por movimentos sociais são examinadas pela literatura especializada. Snow et al. (1986)SNOW, D. et al. Frame alignment processes, micromobilization, and movement participation. American Sociological Review, v. 51, p. 464-481, 1986. observaram as dinâmicas de apropriação de sentido subjacentes à criação, reciclagem e projeção de enquadramentos por movimentos sociais. Os quadros podem criar mecanismos e incentivos para ações individuais e coletivas de participantes ou potenciais militantes. Além disso, tendem a ser alinhados por meio de processos específicos, como a amplificação de elementos simbólicos para atrair novos integrantes; a criação de pontes entre bandeiras e demandas distintas e até então desconectadas; a extensão de determinadas visões a fim de abranger e encampar outros movimentos sociais; a transformação de quadros quando isso é considerado necessário para preservar o apoio de atuais integrantes.

De onde vêm tantos olhares reducionistas que os movimentos sociais, em particular aqueles vinculados a povos indígenas, precisam combater? Sob o olhar do colonizador, os povos originários, suas culturas e organizações sociais são frequentemente demarcados como diferentes e desconsiderados como outros (CALDERONI; URQUIZA, 2015CALDERONI, V. A. M. O.; URQUIZA, A. H. A. A influência dos Estudos Culturais para a construção dos diferentes olhares e saberes sobre os povos indígenas. Cadernos de Estudos Culturais, v. 7, n. 13, p. 9-22, 2015.), o que tende a facilitar a disseminação de estereótipos, a espetacularização e o silenciamento das vozes indígenas pelas mídias industriais no Brasil. A diferença, embora seja com frequência percebida como instabilidade e polarizada, e assim perigosa, pode ser compreendida como essencial, por ser uma significante e expandir a base cultural (HALL, 2016HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.). A delimitação forçada e artificial da diferença fornece parte do substrato da expulsão daquilo que não se encaixa na suposta normalidade na qual o diferente alegadamente não pertence.

Identidades são construídas e reconstruídas nesse fluxo de enfrentamento entre polos que chamam para si a prerrogativa de se definirem. No contexto, o net-ativismo dos povos originários pode contribuir para o desenvolvimento de um diálogo político e intercultural, além de mobilizações, resistências, defesa e reconhecimento de direitos (DI FELICE; PEREIRA, 2021DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. As qualidades ecológicas das redes indígenas no Brasil. Chasqui, n. 147, p. 201-220, 2021.; FRANCO; DI FELICE; PEREIRA, 2020FRANCO, T. C.; DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. O net-ativismo indígena na Amazônia, em contextos pandêmicos. Estudos em Comunicação, n. 31, p. 109-132, 2020.).

No percurso, o net-ativismo enfrenta a cultura da mídia, que cria e propaga símbolos e mitos, influencia visões e valores sobre classe, raça e etnia, e favorece a imposição de autoridade por meio da violência simbólica. A cultura da mídia, incorporada por discursos sociais e políticos, traça ideologias dominantes e opressoras, e cristaliza hierarquias sociais que alimentam formações identitárias (KELLNER, 2001KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.).

Povos originários tendem, a partir de perspectivas etnocêntricas e coloniais, a ser representados como vetores de atraso, perturbação social e selvageria, representações que podem ser naturalizadas ao longo do tempo em uma forma de violência cultural (BRAGA; CAMPOS, 2013BRAGA, C. F.; CAMPOS, P. H. F. Representações sociais, comunicação e identidade: o indígena na mídia impressa. Comunicação & Informação, v. 16, n. 2, p. 107-122, 2013.; CABRAL; SALHANI, 2017CABRAL, R.; SALHANI, J. Jornalismo para a paz: conceitos e reflexões. E-Compós, v. 20, n. 3, 2017.).

A cultura da mídia consagra o não reconhecimento e a invisibilidade do indígena como ator social qualificado (RIBEIRO, 201RIBEIRO, D. Lugar de fala. São Paulo: Polén, 2019.9). O enfrentamento poderia se dar com a pedagogia crítica da mídia, por meio da qual os atores marginalizados possam, a partir da afirmação de seu lugar cultural, confrontar a manipulação midiática, resistir e exigir um tratamento justo, além de atuar de maneira ativa na luta pela ressignificação de suas bandeiras (KELLNER, 2001KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.).

Se, com a internet, a produção de conteúdo se tornou mais participativa e possibilitou a ação política de grupos excluídos, o ciberespaço se transforma em um mecanismo político de luta social, marcado pela comunicação cidadã, meio dos grupos invisibilizados se mobilizarem e buscarem justiça social (PERUZZO, 2009PERUZZO, C. M. K. Conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária revisitados e as reelaborações no setor. ECO-Pós, v. 12, n. 2, p. 46-61, 2009.; TAVARES, 2012aTAVARES, J. B. Ciber-informações indígenas no Brasil: um mapeamento e análise da comunicação de povos indígenas brasileiros na internet a partir das potencialidades das novas mídias e do aporte da comunicação comunitária. Vozes & Diálogos, v. 11, n. 1, 2012a.; 2012bTAVARES, J. B. Ciber-informações nativas: a difusão da informação em cibermeios de autoria de povos indígenas. Alterjor, v. 5, n. 1, p. 1-14, 2012b.).

Redes sociais adquirem o potencial de se tornar meios de engajamento on-line e abertura de espaço para vozes silenciadas, inclusive de movimentos indígenas brasileiros. Resistências, reivindicações de direitos e especificidades culturais dos povos originários podem ganhar visibilidade e gerar sensibilização da opinião pública e envolvimento em favor de suas causas. Conteúdos digitais servem à projeção de narrativas e identidades; produtores de uma memória relacional, os povos originários elaboram discursos sobre quem são e quais lugares ocupam na sociedade (DI FELICE; PEREIRA, 2021DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. As qualidades ecológicas das redes indígenas no Brasil. Chasqui, n. 147, p. 201-220, 2021.).

Desta forma, por estruturarem grupos políticos e desempenharem formas de ativismo pautadas na percepção de injustiças e exclusões sistêmicas, os movimentos sociais vinculados a povos indígenas podem ser considerados enquanto contrapúblico na paisagem mais ampla da democracia digital, podendo gerar espaços crítico-reflexivos, por meio da disseminação de contradiscursos (DAHLBERG, 2011DAHLBERG, L. Re-constructing digital democracy: an outline of four ‘positions’. New Media & Society, v. 13, n. 6, p. 855–872, 2011.).

A crescente organização de recursos e atores determina a “busca por novas formas de política popular em um momento de desconfiança nas instituições políticas” (COULDRY; VAN DIJCK, 2015COULDRY, N.; VAN DIJCK, J. Researching social media as if the social mattered. Social Media + Society, v. 1, n. 2, p. 1-7, 2015., p. 3). A fim de ampliar sua representatividade, ativistas digitais exploram as mídias sociais como espaços de luta e poder, nos quais as hegemonias podem ser desafiadas por atores alternativos (FUCHS, 2015FUCHS, C. Power in the age of social media. Journal of Critical Theory, v. 1, n. 1, p. 1-29, 2015.). O contrapoder é exercido através de resistências e esforços orientados à transformação de relações de poder e à abertura para recolocar questões nem sempre transparentes nas esferas de governo (CASTELLS, 2013CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.).

Obviamente, o otimismo advindo do potencial da tecnologia deve ser relativizado, inclusive no caso dos ativismos dos povos originários. Cabe reiterar o alerta já usual na literatura especializada, seja nos termos do internetcentrismo de Fuchs (2015)FUCHS, C. Power in the age of social media. Journal of Critical Theory, v. 1, n. 1, p. 1-29, 2015. – o poder da rede precisa ser continuamente posto em questão, em função da dificuldade de a participação digital gerar mudança social significativa – ou de Couldry e Van Dijck (2015)COULDRY, N.; VAN DIJCK, J. Researching social media as if the social mattered. Social Media + Society, v. 1, n. 2, p. 1-7, 2015. – as mídias não apenas projetam representações da realidade social, mas também estão ancoradas sobre arranjos particulares de interesses políticos e econômicos, que por sua vez conformam infraestruturas de manipulação da interação nas plataformas de redes sociais, em vista das estratégias de monetização. Além disso, Fuchs (2015)FUCHS, C. Power in the age of social media. Journal of Critical Theory, v. 1, n. 1, p. 1-29, 2015. ainda ressalta que as plataformas de redes sociais sustentam determinadas estruturas de poder na sociedade contemporânea. São veículos de exploração e opressão à medida que propiciam a vantagem da visibilidade às elites, enquanto os demais grupos lutam de forma desigual, competindo por recursos que os conduzam a algum empoderamento.

Pesquisas incipientes têm buscado rastrear os resultados de tais mobilizações. Pereira (2018)PEREIRA, E. A ecologia digital da participação indígena brasileira. Lumina, v. 12, n. 3, p. 93-112, 2018. sugere, como exemplo positivo de mobilização indígena nas mídias digitais brasileiras, o caso dos Guarani Kaiowá, no Estado de Mato Grosso do Sul, que, após serem ameaçados por uma ordem de reintegração de posse que os expulsaria de suas terras tradicionais, divulgaram na internet uma carta de denúncia. Este documento ganhou projeção e originou protestos que contribuíram para a suspensão da medida.

Trata-se de um exemplo a ser reproduzido, mas que depende da resolução de dificuldades como “vulnerabilidade e marginalidade social, que leva a uma situação de exclusão digital” (PINTO, 2018PINTO, A. A. O protagonismo comunicacional-informacional-digital indígena na sociedade da informação: antecedentes, experiências e desafios. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, v. 11, n. 2, p. 104-127, 2018., p. 111) nas comunidades indígenas. Desigualdades estruturais e escassez de políticas públicas de alfabetização tecnológica e acesso digital, problemas conhecidos do uso da internet para o aprofundamento da democracia digital (BLUMLER; COLEMAN, 2009BLUMLER, J. G.; COLEMAN, S. The internet and democratic citizenship. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.), também são empecilhos para a participação digital dos povos originários.

São obstáculos, inclusive, que, apesar de raramente serem estudados em relação às demandas dos povos originários, têm sido analisados pela literatura especializada produzida no Brasil sobre o rápido crescimento dos ativismos digitais no país em várias áreas de políticas públicas. Fonseca et al. (2019)FONSECA, N. S.; LABOISSIERE, L. M.; CAL, D.; CARVALHO, R. M. Ativismo digital: humor e o questionamento de hierarquias sociais na fanpage “Vagas arrombadas”. Fronteiras, v. 21, n. 3, p. 15-27, 2019. buscaram compreender como ocorrem as discussões públicas e trocas simbólicas na rede, além de possíveis repercussões e implicações políticas. Sua perspectiva prolonga aquela adotada em estudos anteriores, nos quais foram investigados as configurações e os usos das mídias sociais para ampliar a participação no debate público, posto que a “‘opinião pública’ enquanto um ator político difuso que é levado em consideração na formulação de agendas públicas, se vê também influenciada pelas ações do ativismo digital” (DESLANDES, 2018DESLANDES, S. F. O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Ciênc. saúde coletiva, v. 23, n. 10, p. 3133-3136, 2018., p. 3135).

No Brasil, os ativismos digitais têm sido investigados com ênfase sobre seu potencial de gerar conversações e deliberações informais. Altheman, Marques e Martino (2017)ALTHEMAN, F.; MARQUES, A. C. S.; MARTINO, L. M. S. Comunicação nos movimentos insurgentes: conversações políticas on-line durante a ocupação de escolas em São Paulo. Esferas, v. 6, n. 10, p. 81-94, 2017. ressaltaram o potencial político existente na informalidade das conversações on-line, que favorecem articulações de processos deliberativos sob uma ética habermasiana do discurso e criam condições de transcendência das ações do ambiente digital para a mobilização presencial. Maia e Rezende (2015)MAIA, R. C. M.; REZENDE, T. A. S. Democracia e a ecologia complexa das redes sociais online: um estudo sobre discussões acerca do racismo e da homofobia. Intexto, n. 34, p. 492-512, 2015. apontaram a existência de uma variedade de sujeitos, formas comunicativas e plataformas, sendo o processo deliberativo resultado da qualidade da exploração de interconexões entre eles, de forma que conflitos e negociações de opiniões não devem ser observados isoladamente no uso de um dispositivo.

Ao invés, é preciso investigar como a ressignificação pode ocorrer por meio da exploração criativa de símbolos e narrativas, em um percurso capaz de questionar os sentidos continuamente postos em circulação pelas mídias industriais, considerando-se, à luz de Fonseca et al. (2019, p. 20)FONSECA, N. S.; LABOISSIERE, L. M.; CAL, D.; CARVALHO, R. M. Ativismo digital: humor e o questionamento de hierarquias sociais na fanpage “Vagas arrombadas”. Fronteiras, v. 21, n. 3, p. 15-27, 2019., que “a internet tem sido utilizada como um espaço de desconstrução e redefinição identitária”. Na próxima seção, aborda-se a metodologia do estudo, realizado a fim de caracterizar a atuação do coletivo Mídia Índia no Instagram, o qual sugerimos como exemplo de diálogo criativo com visões hegemônicas.

Metodologia

A metodologia que utilizamos é a análise da narrativa (BARTHES et al., 1973BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.; MOTTA, 2013MOTTA, L. G. Análise crítica da narrativa. Brasília: Ed. UnB, 2013.; HALL, 2016HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.). O corpus foi composto por 31 postagens selecionadas publicadas em 2019 na página no Instagram da Mídia Índia (www.instagram.com/midiaindiaoficial), coletivo de indígenas de diversas comunidades, regiões e povos do Brasil que, segundo a apresentação em sua página web, é “protagonizada por jovens indígenas que contribuem para romper uma comunicação hegemônica e não participativa” (MÍDIA ÍNDIA, 2021MÍDIA ÍNDIA. Home. Disponível em: <https://midiaindia.org/>. Acesso em: 18 jan. 2022.
https://midiaindia.org/...
). O ano de 2019 foi escolhido por ser o primeiro após a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, marcado por inflexões na gestão de políticas públicas para diversos setores sociais, incluindo indígenas. Apenas as postagens que consideramos dialogar expressamente com estereótipos e visões pejorativas hegemônicas foram incluídas no corpus, que assim excluiu postagens centradas em divulgação de eventos e críticas a aspectos específicos da administração federal, como projetos em tramitação ou medidas sobre demarcação de terras, gestão de reservas etc.

À luz das teorizações que informam a metodologia de análise da narrativa, as postagens do Instagram foram tidas como vetores de ressignificações, às quais subjazem diálogos com os contextos histórico, social e cultural. O emissor, embora não possua controle absoluto dos processos de reinterpretação de sentido pelos diversos públicos, pode encorajar determinadas apropriações de significados, de modo a favorecer certas compreensões. A combinação de elementos visuais e textuais típicas das postagens do Instagram foi tida como veículo privilegiado de processos de construção de sentido destinados a questionar visões dominantes sobre os indígenas e suas demandas políticas e identitárias.

Silva (2014)SILVA, W. S. Imagem e subjetividade: Narrativas fotográficas confessionais e a estética da afetividade. Ciberlegenda, n. 31, p. 65-75, 2014. aponta particularidades dessa plataforma de rede social, como o diálogo entre usuários em fluxo contínuo, o que pode influenciar a interpretação dos significados de cada imagem e favorecer a formação de laços afetivos; além disso, no Instagram a palavra interage com a imagem, contribuindo para ressignificar os contextos referidos por uma postagem.

Seguimos o percurso metodológico proposto por Motta (2013)MOTTA, L. G. Análise crítica da narrativa. Brasília: Ed. UnB, 2013., em sua leitura da literatura especializada (BARTHES et al., 1973BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.; HALL, 2016HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.), composto por três etapas, dedicadas à identificação, descrição e compreensão de: plano da expressão (linguagem ou discurso); plano da estória (conteúdo); e plano da metanarrativa (tema de fundo).

O plano da expressão corresponde à superfície do objeto. Trata-se do modo como o emissor formula a mensagem por meio da aplicação de estratégias de linguagem (imagem ou figuras de linguagem, por exemplo). Metodologicamente, a identificação do plano da expressão requer a descrição do que está visivelmente representado.

O plano da estória abriga significados que povoam imaginários social e historicamente construídos e são evocados pelos elementos do plano da expressão. Analisá-lo exige caracterizar as possíveis interpretações mobilizadas por seus elementos.

O plano da metanarrativa corresponde ao cenário mais amplo convocado pelas interpretações suscitadas pelo plano da estória. Para sua análise, é preciso discernir aspectos que ultrapassam os limites do objeto e se relacionam aos contextos mobilizados, subjacentes aos significados que se busca estabelecer.

Em função dos limites deste artigo, nos resultados serão apresentados de forma sintética os três planos de apenas 12 postagens mais representativas do corpus em função de nossos objetivos.

Resultados e discussão

Em novembro de 2022, o perfil da Mídia Índia no Instagram possuía 185 mil seguidores e 9.073 publicações, além de seguir 1.330 perfis. Postagem de 14 de janeiro de 2019 que recebeu 205 curtidas exibe uma charge na qual se vê a bandeira do Brasil e, em torno dela, três mulheres de mãos dadas, representando indígenas, negras e integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Elas estão prontas para o confronto com o presidente Jair Bolsonaro, caricaturizado com chapéu de vaqueiro e serra elétrica em mãos (Figura 1).

Figura 1
Charge extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 14/01/2019

A charge parece confrontar a visão dominante de que os indígenas estariam isolados na defesa de suas próprias causas, desligados de outras demandas sociais, em particular de outros segmentos discriminados, como mulheres, negras e trabalhadoras rurais sem-terra. Na representação, tais segmentos se unem para enfrentar Bolsonaro, retratado de modo a simbolizar os alegados interesses das cadeias industriais do agronegócio no desmatamento.

A sobreposição entre identidades femininas e indígenas também está presente em postagem de 11 de abril de 2019, que recebeu 561 curtidas, na qual são vistas três mulheres indígenas com os braços entrelaçados, cada uma com sua figura cindida entre papéis sociais distintos (Figura 2).

Figura 2
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 11/04/2019

Acessórios, peles, cabelos e roupas diferentes sugerem pluralidade étnica e cultural e diversidade de lugares sociais, buscando contrariar a percepção hegemônica de que não haveria diferenças culturais significativas entre indígenas. Em particular, notam-se elementos urbanos e tradicionais, e as diferenças aparecem superadas pelos braços entrelaçados, indicando harmonia, respeito e apoio mútuo no protagonismo feminino, necessários ao enfrentamento de ameaças comuns. O texto que acompanha a ilustração reforça tal interpretação: “Onde está a nossa identidade? (...) No resistir da colonização”.

O protagonismo da mulher indígena também está em postagem do mesmo dia (11/04/2019), que recebeu 519 curtidas e exibe a fotografia de uma mulher com expressão séria. Ela veste um cocar e mostra a palma da mão, em que se lê: “Dar licença do nosso caminho que queremos passar com a pintura e cocar”. O texto da postagem complementa a mensagem: “Saia com o seu racismo e o seu conservadorismo do nosso caminho que queremos passar com a nossa pintura corporal, com o cocar, com nossas vestimentas e com nossa identidade” (Figura 3).

Figura 3
Fotografia extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 11/04/2019

A imagem sugere o compromisso da mulher indígena com a necessidade de afirmar identidades e culturas por meio de resistência e enfrentamento de visões estigmatizantes de cunho racista que buscam deslegitimar sua inserção social e suas lutas. A imposição de padrões que aspiram a ser centrais pelo colonizador é denunciada como prática associada à morte e à eliminação de valores e crenças.

A gravidade da postagem reproduzida na Figura 3 contrasta com a anterior, de 10 de abril de 2019, que parece repudiar as abordagens das quais indígenas seriam vítimas no cotidiano urbano, de espanto e estranhamento em relação à sua própria existência na sociedade contemporânea. Em outra ilustração, vê-se uma mulher indígena com sobrancelhas arqueadas, testa franzida e expressão de insatisfação diante da indagação “Você é indígena de verdade?”. Sua resposta ironiza: “Não, eu sou uma miragem e você é branco de verdade?” (Figura 4).

Figura 4
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 10/04/2019

A expressão facial e a postura corporal sugerem a reação inconformada com a permanência do racismo estrutural, nesta postagem que recebeu 602 curtidas. A questão simplesmente não estaria posta à população branca, que não seria forçada a viver constrangimentos e ser chamada a legitimar seu pertencimento à sociedade. Taticamente, a ilustração alerta para o contraste.

O diálogo com a afirmação identitária também esteve em postagem de 19 de março de 2019 que exibe uma ilustração de perfis de homens e mulheres indígenas em fileiras com vestes tradicionais diversas, sob a frase “Existe muito índio no Brasil” (Figura 5).

Figura 5
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 19/03/2019

A ilustração, que recebeu 886 curtidas, parece exaltar o fato de que existem variados povos indígenas, que possuem tradições próprias e convivem em harmonia, assim propõem os corações e a exclamação no texto que a acompanha: “Nossa diversidade cultural!”. Se a afirmação “existe muito índio no Brasil” parece questionar a visão segundo a qual existe uma população indígena indistinta e amorfa que pouco tem a contribuir para a diversidade cultural no país, as cores e grafismos dos perfis sugerem que a contribuição existe e pode ser facilmente percebida por um olhar atento aos costumes e práticas.

A diversidade comparece ao perfil da Mídia Índia no Instagram inclusive na afirmação de gênero. A temática dos direitos dos públicos LGBTQIA+ está em postagem de 24 de junho de 2019, que recebeu 847 curtidas e exibe uma fotografia de duas mulheres se beijando em público, com muitas pessoas ao fundo, como em uma marcha ou protesto. Brincos, pinturas faciais e cortes de cabelo sugerem que são indígenas. Uma delas veste uma bandeira com as cores do arco-íris, representando o grupo de gênero a qual pertencem (Figura 6).

Figura 6
Fotografia extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 24/06/2019

O texto que acompanha a fotografia na postagem contextualiza historicamente o problema nas comunidades indígenas: “a primeira vítima de homofobia no Brasil foi um INDÍGENA, em 1614 Tibira foi assassinado”. Propõe-se que a luta por direitos de um e outro segmento é indissociável, e na prática do ativismo se encontra unificada.

A temática sob tratamento histórico também esteve em postagem de 24 de dezembro de 2019 que recebeu 1.394 curtidas e apresenta a fotografia de um indígena exibindo a bandeira LGBTQIA+. Destaca-se sua expressão de satisfação e orgulho por segurá-la (Figura 7).

Figura 7
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 24/12/2019

O sentido é claro: se indígenas homossexuais podem ser duplamente discriminados, o ativismo requer um enfrentamento de acordo. A recuperação da informação histórica fundamenta a luta em ambas as frentes.

A luta simbólica pela afirmação identitária também ocorre quando o perfil da Mídia Índia no Instagram busca dialogar com dois aspectos que com frequência sustentam visões discriminatórias: o de que o indígena não teria direito a ascender socialmente por meio do acesso à educação superior e o de que deveria estar excluído do uso da tecnologia comum no cotidiano da sociedade contemporânea, como smartphones e notebooks.

Postagem de 11 de maio de 2019 que recebeu 2.481 curtidas exibe a ilustração de um indígena com um smartphone em mãos. À esquerda, um balão expressa sua crítica: “Meu celular não me faz menos indígena!”. À direita, outro balão ironiza: “Seu cocar falsificado não te faz indígena!” (Figura 8).

Figura 8
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 11/05/2019

Ao se referir ao fato de que imitações de adereços típicos podem ser usadas por qualquer pessoa que pretenda assimilar provisoriamente traços de uma identidade alheia, sem na prática modificar sua origem, a mensagem da ilustração aplica a mesma lógica para justificar por que razão o uso da tecnologia não modifica a identidade original do indígena.

Explorando raciocínio similar, postagem de 26 de novembro de 2019 que recebeu 2.101 curtidas exibe uma fotografia de dois indígenas em uma floresta, um deles com um notebook Apple em mãos, ambos com expressões de satisfação, denotando um possível uso proveitoso da tecnologia em seu cotidiano. O texto da postagem favorece o entendimento: “Conectados com a floresta” (Figura 9).

Figura 9
Fotografia extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 26/11/2019

A postagem, que recebeu 2.101 curtidas, serve à crítica da visão hegemônica segundo a qual os indígenas deveriam permanecer à margem da civilização, a fim de manter sua identidade, e seriam simplesmente incapazes de dominar o uso da tecnologia, ainda que tivessem acesso a ela ou a desejassem. Ora, sugere a imagem, não apenas a dominam, como também sabem escolher os equipamentos mais caros, simbolizados pelo logotipo da Apple no notebook. Em “conectados com a floresta”, instala-se a ambiguidade que incentiva a reflexão: a conexão com a natureza, que também pode ser um estigma ao supor isolamento da sociedade, e a conexão com o mundo pela tecnologia, que também é um recurso para a exploração da natureza.

O empoderamento pela via tecnológica é representado de forma contundente em postagem de 1º de maio de 2019 que recebeu 439 curtidas, na qual se vê a imagem de um indígena empunhando um smartphone como se tirasse uma fotografia. Sobre a imagem, lê-se: “é hora de demarcar as telas! Comunicar para lutar!”. O texto da postagem propõe que a tecnologia permite “monitorar nosso território, dar visibilidade a nossa luta, mostrando a nossa história como ela realmente deve ser contada” (Figura 10).

Figura 10
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 01/05/2019

O trocadilho entre demarcar as terras e “demarcar as telas” subverte a expectativa de que indígenas devem se preocupar apenas com a política em si, ao sugerir que eles também devem estar atentos em como a política é representada simbolicamente, ou seja, sabem que é preciso “comunicar para lutar” e buscam dominar a tecnologia para atingir esse fim.

O empoderamento do indígena é, finalmente, o tema de duas postagens que defendem seu direito à inclusão no ensino, em particular no nível superior. Em 16 de maio de 2019, temos a imagem de um indígena, aparentemente em idade de cursar universidade, segurando um cartaz em que se lê: “Quando se nasce pobre, e índio, estudar é a maior rebeldia contra o sistema”. O jovem usa óculos e exibe expressão de seriedade (Figura 11). Esta postagem recebeu 2.414 curtidas.

Figura 11
Fotografia extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 16/05/2019

O cartaz sugere ativismo. A luta está posta, e nela os indígenas devem confrontar o estereótipo de que tanto sua condição étnica quanto sua classe social os impedem de estudar e os condicionam a permanecer na ignorância sobre seus direitos. Educação é, sobretudo, via de transformação do status quo, especialmente para eles.

Já em 21 de maio de 2019, uma postagem que recebeu 555 curtidas exibe a ilustração de uma jovem indígena, com um livro em mãos, e em sua capa se lê: “Sobre direitos”. Ao fundo, vê-se um edifício, e em sua fachada se lê: “Universidade” (Figura 12).

Figura 12
Ilustração extraída do perfil da Mídia Índia no Instagram, publicada em 21/05/2019

A postagem sugere que o acesso dos povos indígenas na universidade é um direito, que eles podem exercer sem deixar de lado suas referências identitárias: a jovem usa calça jeans e camiseta, mas a pintura facial é sua marca. O texto ao lado da imagem informa a realização de seminário sobre políticas de acesso e permanência no Ensino Superior. A universidade os acolhe.

Se estereótipos e visões pejorativas predominam na cobertura jornalística sobre temas que se relacionam à afirmação de direitos dos povos originários no Brasil, conforme indicam estudos de enquadramento e representação simbólica (SILVA; RAPOSO, 2021SILVA, M. P.; RAPOSO, M. M. Jornalismo e ideologia da cultura: os conflitos entre indígenas e ruralistas em Mato Grosso do Sul. Matrizes, v. 15, n. 1, p. 249-274, 2021.; SILVA; MENESES; DEMARCHI, 2020SILVA, L. B.; MENESES, V. D., DEMARCHI, A. L. C. Resíduos sólidos e povos indígenas: enquadramentos da mídia no Brasil. Humanidades & Inovação, v. 7, n. 16, p. 482-493, 2020.; MENDES, 2019MENDES, F. M. M. Jornalismo e representações: um estudo sobre os povos indígenas no G1/Acre (2013 a 2018). Moara, n. 54, p. 395-411, 2019.; QUINTANA; SANTOS, 2019QUINTANA, M. I.; SANTOS, E. M. Enquadramento midiático local em torno da luta indígena pela terra. In: FLORES, G. G. B. et al. (org.). Discurso, cultura e mídia: pesquisas em rede. v. 3. Santiago: Oliveira, 2019. p. 496-514.; BEZERRA, 2018BEZERRA, A. A. S. Violações dos direitos dos povos indígenas: os meios de comunicação no caso Tupinambá. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 6, n. 1 p. 129-145, 2018.), as postagens analisadas sugerem que o ativismo digital indígena tem buscado enfrentá-los de formas criativas.

Questionando-os, as postagens examinadas exibem apropriações específicas de sentido, que parecem dirigir-se exatamente ao centro das visões discriminatórias que afetam a luta por direitos. As dinâmicas de ressignificação apresentam três traços perceptíveis, à luz da literatura especializada (SNOW et al., 1986SNOW, D. et al. Frame alignment processes, micromobilization, and movement participation. American Sociological Review, v. 51, p. 464-481, 1986.): criação de pontes entre bandeiras e demandas distintas e até então desconectadas; extensão de determinadas visões em busca de abranger outros movimentos sociais; e transformação de quadros.

No corpus analisado, as pontes foram criadas entre movimentos de defesa de indígenas, negros, mulheres e públicos LGBTQIA+; bandeiras da luta indígena foram estendidas a fim de se apresentar como similares a de outros movimentos; e quadros de discriminação foram contestados e esmiuçados, buscando-se incentivar uma percepção capaz de transformar possíveis compreensões anteriores baseadas em preconceito e discriminação. Ao passo que estas dinâmicas são conhecidas pela literatura sobre ativismo digital (DI FELICE; PEREIRA, 2021DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. As qualidades ecológicas das redes indígenas no Brasil. Chasqui, n. 147, p. 201-220, 2021.; FRANCO; DI FELICE; PEREIRA, 2020FRANCO, T. C.; DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. O net-ativismo indígena na Amazônia, em contextos pandêmicos. Estudos em Comunicação, n. 31, p. 109-132, 2020.), este estudo sugere que a Mídia Índia tem sido bem-sucedida ao explorá-las, ao reativar e reciclar perspectivas circulantes, questionando-as a fim de compor arranjos inovadores, com potencial significativo de fortalecimento da luta simbólica (COULDRY; VAN DIJCK, 2015COULDRY, N.; VAN DIJCK, J. Researching social media as if the social mattered. Social Media + Society, v. 1, n. 2, p. 1-7, 2015.; FUCHS, 2015FUCHS, C. Power in the age of social media. Journal of Critical Theory, v. 1, n. 1, p. 1-29, 2015.).

Não são poucos os olhares reducionistas que os povos originários precisam combater. Com frequência demarcados como portadores de uma diferença irredutível e justificadora de exclusão, são vítimas da disseminação de estereótipos, espetacularização e silenciamento (HALL, 2016HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.), que povoam tanto os enquadramentos jornalísticos (ENTMAN, 2007ENTMAN, R. M. Framing bias: media in the distribution of power. Journal of Communication, v. 57, p. 163-173, 2007.), quanto a cultura da mídia (KELLNER, 2001KELLNER, D. A cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001.).

Ao buscarem subverter tais olhares e desnudar suas incoerências, as postagens do coletivo Mídia Índia no Instagram podem desencadear reflexões e ponderações que contribuam, ao longo do tempo, para transformar a realidade das políticas públicas que permitam o atendimento de seus direitos, por meio da transformação das percepções simbólicas dessa realidade (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.).

Considerações finais

Construídas e reconstruídas por dinâmicas de enfrentamento simbólico, as identidades dos povos originários encontram, no net-ativismo, o potencial de estabelecimento de um diálogo político e intercultural com vários públicos, informando mobilizações e resistências em busca do reconhecimento de direitos pelas políticas públicas que os afetam.

Neste artigo, empregamos a análise da narrativa sobre um corpus composto por postagens selecionadas de 2019 publicadas na página no Instagram da Mídia Índia que evocam expressamente estereótipos e visões pejorativas hegemônicas. Esse corpus foi considerado um vetor de ressignificação, em relação com contextos histórico, social e cultural, assumindo-se como veículo privilegiado de questionamento de visões dominantes sobre os indígenas e suas demandas. Nesse sentido, destaca-se a criatividade dos comunicadores do coletivo, que reside sobretudo na habilidade em evocar significados correntes, colocá-los em xeque, trazer à tona sua incoerência por incorrerem em preconceitos e sugerir perspectivas condizentes com a afirmação de direitos humanos. São operações de construção de mensagens que se valem da característica típica de uma rede social que permite associações engenhosas entre imagem e palavra para produzir convites à reflexão e potencial revisão de crenças e valores.

Os resultados sugerem que o coletivo desenvolve sua comunicação de modo a confrontar perspectivas etnocêntricas e coloniais que tendem a representá-los, em uma forma de violência cultural, como vetores de atraso e perturbação. A rede social foi explorada de modo a se constituir como um espaço de engajamento on-line e abertura para vozes silenciadas. Os conteúdos devem servir à projeção de identidades como contraposição e resistência, em um ativismo dirigido contra injustiças e exclusões.

Os contornos do desenho de pesquisa impediram a ampliação do período de análise e realização de netnografias com produtores e usuários de conteúdo, limitações que podem ser superadas por estudos futuros, a fim de aprofundar o conhecimento científico sobre o net-ativismo dos povos originários no Brasil.

  • 1
    Este artigo inclui resultados de pesquisa desenvolvida com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), processo 305689/2019-3, e apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001, Programa Probral, processo 88887.371422/2019-00.

Referências

  • ALTHEMAN, F.; MARQUES, A. C. S.; MARTINO, L. M. S. Comunicação nos movimentos insurgentes: conversações políticas on-line durante a ocupação de escolas em São Paulo. Esferas, v. 6, n. 10, p. 81-94, 2017.
  • BARTHES, R. et al. Análise estrutural da narrativa Petrópolis, RJ: Vozes, 1973.
  • BEZERRA, A. A. S. Violações dos direitos dos povos indígenas: os meios de comunicação no caso Tupinambá. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v. 6, n. 1 p. 129-145, 2018.
  • BLUMLER, J. G.; COLEMAN, S. The internet and democratic citizenship Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
  • BONIN, I. T.; KIRCHOF, E. R.; RIPOLL, D. Disputas pela representação do corpo indígena no Twitter. Rev. Bras. Estud. Presença, v. 8, n. 2, p. 219-247, 2018.
  • BOURDIEU, P. O poder simbólico Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
  • BRAGA, C. F.; CAMPOS, P. H. F. Representações sociais, comunicação e identidade: o indígena na mídia impressa. Comunicação & Informação, v. 16, n. 2, p. 107-122, 2013.
  • BRAGA, J. L. A prática da pesquisa em comunicação: abordagem metodológica como tomada de decisões. E-Compós, v. 14, n. 1, p. 1-33, 2011.
  • CABRAL, R.; SALHANI, J. Jornalismo para a paz: conceitos e reflexões. E-Compós, v. 20, n. 3, 2017.
  • CALDERONI, V. A. M. O.; URQUIZA, A. H. A. A influência dos Estudos Culturais para a construção dos diferentes olhares e saberes sobre os povos indígenas. Cadernos de Estudos Culturais, v. 7, n. 13, p. 9-22, 2015.
  • CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
  • COULDRY, N.; VAN DIJCK, J. Researching social media as if the social mattered. Social Media + Society, v. 1, n. 2, p. 1-7, 2015.
  • DAHLBERG, L. Re-constructing digital democracy: an outline of four ‘positions’. New Media & Society, v. 13, n. 6, p. 855–872, 2011.
  • DESLANDES, S. F. O ativismo digital e sua contribuição para a descentralização política. Ciênc. saúde coletiva, v. 23, n. 10, p. 3133-3136, 2018.
  • DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. As qualidades ecológicas das redes indígenas no Brasil. Chasqui, n. 147, p. 201-220, 2021.
  • ENTMAN, R. M. Framing bias: media in the distribution of power. Journal of Communication, v. 57, p. 163-173, 2007.
  • FONSECA, N. S.; LABOISSIERE, L. M.; CAL, D.; CARVALHO, R. M. Ativismo digital: humor e o questionamento de hierarquias sociais na fanpage “Vagas arrombadas”. Fronteiras, v. 21, n. 3, p. 15-27, 2019.
  • FRANCO, T. C.; DI FELICE, M.; PEREIRA, E. S. O net-ativismo indígena na Amazônia, em contextos pandêmicos. Estudos em Comunicação, n. 31, p. 109-132, 2020.
  • FUCHS, C. Power in the age of social media. Journal of Critical Theory, v. 1, n. 1, p. 1-29, 2015.
  • HALL, S. Cultura e representação Rio de Janeiro: PUC-Rio; Apicuri, 2016.
  • KELLNER, D. A cultura da mídia Bauru, SP: EDUSC, 2001.
  • MAIA, R. C. M.; REZENDE, T. A. S. Democracia e a ecologia complexa das redes sociais online: um estudo sobre discussões acerca do racismo e da homofobia. Intexto, n. 34, p. 492-512, 2015.
  • MENDES, F. M. M. Jornalismo e representações: um estudo sobre os povos indígenas no G1/Acre (2013 a 2018). Moara, n. 54, p. 395-411, 2019.
  • MENDONÇA, R. F.; SIMÕES, P. G. Enquadramento: diferentes operacionalizações analíticas de um conceito. Rev. bras. Ci. Soc, v. 27, n. 79, p. 187-201, 2012.
  • MÍDIA ÍNDIA. Home Disponível em: <https://midiaindia.org/>. Acesso em: 18 jan. 2022.
    » https://midiaindia.org/
  • MOTTA, L. G. Análise crítica da narrativa Brasília: Ed. UnB, 2013.
  • PEREIRA, E. A ecologia digital da participação indígena brasileira. Lumina, v. 12, n. 3, p. 93-112, 2018.
  • PERUZZO, C. M. K. Conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária revisitados e as reelaborações no setor. ECO-Pós, v. 12, n. 2, p. 46-61, 2009.
  • PINTO, A. A. O protagonismo comunicacional-informacional-digital indígena na sociedade da informação: antecedentes, experiências e desafios. Anuario Electrónico de Estudios en Comunicación Social “Disertaciones”, v. 11, n. 2, p. 104-127, 2018.
  • PORTO, M. P. Enquadramentos da mídia e política. In:RUBIM, A. A. C. (org.). Comunicação e política: conceitos e abordagens São Paulo: Unesp; Salvador: EdUFBA, 2004. p. 73-104.
  • QUINTANA, M. I.; SANTOS, E. M. Enquadramento midiático local em torno da luta indígena pela terra. In: FLORES, G. G. B. et al. (org.). Discurso, cultura e mídia: pesquisas em rede v. 3. Santiago: Oliveira, 2019. p. 496-514.
  • RIBEIRO, D. Lugar de fala São Paulo: Polén, 2019.
  • SILVA, L. B.; MENESES, V. D., DEMARCHI, A. L. C. Resíduos sólidos e povos indígenas: enquadramentos da mídia no Brasil. Humanidades & Inovação, v. 7, n. 16, p. 482-493, 2020.
  • SILVA, M. P.; RAPOSO, M. M. Jornalismo e ideologia da cultura: os conflitos entre indígenas e ruralistas em Mato Grosso do Sul. Matrizes, v. 15, n. 1, p. 249-274, 2021.
  • SILVA, W. S. Imagem e subjetividade: Narrativas fotográficas confessionais e a estética da afetividade. Ciberlegenda, n. 31, p. 65-75, 2014.
  • SNOW, D. et al. Frame alignment processes, micromobilization, and movement participation. American Sociological Review, v. 51, p. 464-481, 1986.
  • TAVARES, J. B. Ciber-informações indígenas no Brasil: um mapeamento e análise da comunicação de povos indígenas brasileiros na internet a partir das potencialidades das novas mídias e do aporte da comunicação comunitária. Vozes & Diálogos, v. 11, n. 1, 2012a.
  • TAVARES, J. B. Ciber-informações nativas: a difusão da informação em cibermeios de autoria de povos indígenas. Alterjor, v. 5, n. 1, p. 1-14, 2012b.

Editado por

Editora responsable: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2022
  • Aceito
    04 Nov 2022
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) Rua Joaquim Antunes, 705, 05415-012 São Paulo-SP Brasil, Tel. 55 11 2574-8477 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: intercom@usp.br