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Operação militar, guerra ou invasão: as primeiras ações russas na ucrânia em 2022 segundo as capas de jornais do Brasil e Portugal
Operación militar, guerra o invasión: las primeras acciones de rusia en ucrania en 2022 segundo las portadas de los periódicos de Brasil y Portugal
Military operation, war or invasion: the first Russian actions in Ukraine in 2022 according to the coverage of the media group in Brazil and Portugal
Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vol. 46, e2023124, 2023
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM)

Artigos


Recepção: 03 Setembro 2022

Aprovação: 02 Novembro 2023

DOI: https://doi.org/10.1590/1809-58442023124pt

Resumo: Neste artigo, nosso objetivo é apresentar quais as formações discursivas, conforme definição do filósofo francês Michel Foucault em sua obra A Arqueologia do Saber (1969), estiveram presentes no jornalismo impresso brasileiro e português a propósito da ação militar da Rússia desencadeada em território ucraniano em 24 de fevereiro de 2022. Este conceito será ainda discutido frente às redefinições de Michel Pêcheux, teórico da Análise do Discurso de linha francesa, o qual deu novos contornos à noção foucaultiana. Analisamos 16 capas de jornais (oito brasileiros e oito portugueses) publicados no dia seguinte ao início das ações russas na Ucrânia. Nossa leitura observa uma adesão dos veículos lusos à causa ucraniana e à demonização do presidente russo Vladimir Putin como o responsável pela deflagração do conflito; no caso brasileiro, a formação discursiva em torno da guerra está bem presente, mas Putin faz parte de uma formação discursiva distinta daquela operada em Portugal.

Palavras-chave: Jornalismo brasileiro, Jornalismo português, Rússia, Análise do discurso.

Resumen: En este artículo, nuestro objetivo es presentar qué formaciones discursivas, tal como las definió el filósofo francés Michel Foucault en su obra La Arqueología del Saber (1969), estuvieron presentes en el periodismo impreso brasileño y portugués sobre la acción militar rusa desatada en territorio ucraniano en febrero. 24, 2022. Este concepto también se discutirá a la luz de las redefiniciones de Michel Pêcheux, un teórico francés del análisis del discurso, quien dio nuevos contornos a la noción foucaultiana. Analizamos 16 portadas de periódicos (ocho brasileños y ocho portugueses) publicadas el día después del inicio de las acciones rusas en Ucrania. Nuestra lectura observa el apoyo de los medios de comunicación portugueses a la causa ucraniana y la demonización del presidente ruso Vladimir Putin como responsable del estallido del conflicto; En el caso brasileño, la formación discursiva en torno a la guerra está muy presente, pero Putin forma parte de una formación discursiva distinta a la que operó en Portugal.

Palabras clave: Periodismo brasileño, Periodismo português, Rusia, Análisis del discurso.

Abstract: The aim of this article is to show which discursive formations, as defined by the French philosopher Michel Foucault in his work The Archeology of Knowledge (1969), were present in Brazilian and Portuguese printed journalism regarding Russia's military action unleashed on Ukrainian territory in February 24, 2022. This concept will also be discussed in light of the redefinitions of Michel Pêcheux, a French theorist of Discourse Analysis, who gave new contours to the Foucauldian notion. We analyzed 16 newspaper covers (eight Brazilian and eight Portuguese) published the day after the beginning of the Russian actions in Ukraine. Our reading observes the support of Portuguese media outlets for the Ukrainian cause and the demonization of Russian President Vladimir Putin as responsible for the outbreak of the conflict; In the Brazilian case, the discursive formation around the war is very present, but Putin is part of a discursive formation that is different from that operated in Portugal.

Keywords: Brazilian journalism, Portuguese journalism, Russia, Speech analysis.

O dia 24 de fevereiro de 2022 ficou marcado na cena internacional pelo avanço do governo da Rússia em dar início a suas “operações militares” no leste do território ucraniano, termo que, para grande parte dos países ocidentais, representava na verdade um eufemismo para “invasão”, “ocupação por meio de forças militares” ou simplesmente “guerra” contra a Ucrânia. Fato é que logo na sequência as ações russas não se limitaram à região leste, pois nas semanas seguintes houve bombardeios e combates na capital ucraniana, Kiev, e em regiões do sul do país, como nas cidades portuárias de Odessa e Mariupol. Passados quatro meses após as primeiras investidas russas no país vizinho, a comunidade internacional do ocidente estabeleceu inúmeras sanções econômicas contra o governo da Rússia (especialmente no que se refere a bloqueios de transações bancárias internacionais e boicote na negociação de fontes de energia russas, como gás e petróleo). O conflito, entretanto, está longe de apresentar uma solução e já se configura para a opinião pública como o maior enfrentamento bélico entre duas nações na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Com o fim da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) no início da década de 1990, as repúblicas anteriormente pertencentes ao império soviético começaram a ganhar sua independência num processo político que ganhou corpo a partir de setembro de 1991. Foram o caso de, em ordem alfabética, da Bielorrússia, Estônia, Geórgia, Cazaquistão, Quirguistão, Letônia, Lituânia, Moldávia, Tajiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão – além da Rússia, que também se transformou num novo Estado nacional e que permaneceu praticamente com a mesma extensão territorial da antiga Rússia, uma das então repúblicas soviéticas. Os diferentes governos que logo se sucederam à recriação do Estado russo nunca viram com bons olhos a expansão para o leste europeu da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), uma organização supranacional do chamado bloco capitalista ocidental criada em 1949 logo após o fim da Segunda, ainda num forte contexto de Guerra Fria, para estabelecer uma frente de cooperação militar transfronteiriça para seus Estados-membro (Piccolli, 2015; Lira Nascimento, 2008; Mielniczuk, 2006; Gaspar, 1995).

De todo modo, o crescente processo de ocidentalização de algumas das ex-repúblicas soviéticas foi-se estabelecendo no início do Século XXI sem grandes ameaças ou sem possibilidade de reação de Moscou, em função das fragilidades do Estado russo diante da nova ordem geopolítica mundial (Lira Nascimento, 2008; Mielniczuk, 2006). Neste ínterim, destacaram-se as entradas da Letônia, Lituânia e Estônia para a OTAN em 2004. Destas três ex-repúblicas soviéticas, duas (a Letônia e a Estônia), por exemplo, mantêm fronteiras com a Rússia. Para além destes novos Estados-membro, outras nações outrora alinhadas ou subordinadas ao império soviético também aderiram à OTAN, casos simbólicos da Polônia, Hungria e República Tcheca (admitidas em 1999) e da Romênia, Bulgária, Eslováquia e Eslovênia – admitidas igualmente em 2004.

As tensões entre o Kremlin (sede do governo russo) e as forças ocidentais ganharam novos contornos em março de 2014, durante o terceiro mandato presidencial de Vladimir Putin, que fora eleito em 2012 para um governo de seis anos. Putin determinou uma intervenção militar na Crimeia, região de maioria russa pertencente ao território ucraniano, com o argumento de que era necessário proteger os compatriotas russos e combater a perseguição do governo da Ucrânia numa região que proclamava sua independência perante o “extremismo” estatal ucraniano (Kulike, 2014; Cunha Leite et al, 2020). Paralelamente, Moscou também passou a apoiar o separatismo das regiões de Donetsk e Lugansk, situadas no leste da Ucrânia e que também possuíam maioria étnica russa.

Com nova reeleição em 2018, num mandato até 2024, Putin voltou a apoiar o separatismo no leste da Ucrânia, o que na versão oficial russa passou a ser o argumento para a “operação militar” que começou a se desenhar no final de 2021 e que foi levada a cabo, finalmente, em fevereiro de 2022. A eleição para a presidência da Ucrânia de Volodymyr Zelensky em 2019 também serviu de justificativa para as iniciativas russas, uma vez que o mandatário ucraniano não mostrou habilidade diplomática ou estratégica para negociar e colocar em marcha a “ocidentalização” de seu país, com a adesão à OTAN e o ingresso na União Europeia.

Esta breve contextualização histórica, com a sequência de alguns acontecimentos que antecederam as ações russas de 24 de fevereiro de 2022, serve-nos apenas para situar o tempo histórico e o interdiscurso dos fatos que seriam reconstruídos por jornais de todo o mundo no dia seguinte, com as representações do conflito Rússia-Ucrânia. Nosso intuito neste artigo, longe de ocupar o público leitor com questões geopolíticas, históricas ou de ciência política, é analisar como alguns diários impressos brasileiros e portugueses retrataram, em suas capas do dia 25 de fevereiro de 2022, as primeiras investidas russas na Ucrânia realizadas na véspera.

Movidos pelo nosso interesse em torno do tema, pudemos reunir 110 capas de jornais de diferentes países do globo publicados naquela data. Como objeto e corpus de pesquisa para este artigo, restringimo-nos apenas aos veículos de língua portuguesa publicados no Brasil e em Portugal, o que totaliza 16 primeiras páginas – oito de veículos brasileiros e oito de veículos portugueses. Nossa escolha procurou contrapor uma visão europeia e uma visão sul-americana perante os acontecimentos extraordinários que passaram a opor militarmente dois países europeus no início do Século XXI, num continente que não assistia a este estado de coisas desde a Segunda Guerra Mundial, finalizada em 1945.

No caso de Portugal, é preciso ainda levar em conta o fato de o país, desde 1949, ser membro fundador da (OTAN, ou NATO, na sigla em inglês, para os portugueses) 1 e integrante da União Europeia 2 desde 1986. Já no caso do Brasil, chama a atenção a posição dúbia do Governo Brasileiro em 2022; se por um lado o presidente Jair Bolsonaro assumiu desde a sua campanha eleitoral uma forte postura contrária aos movimentos de esquerda e àquilo que forças bolsonaristas chamavam de “comunismo” – como a herança russa e soviética na formação de diversos partidos de esquerda no Brasil no Século XX –, por outro lado o próprio Bolsonaro mostrou-se simpático à geopolítica do governo russo, especialmente às ações do presidente Vladimir Putin, o que ficou demonstrado por ocasião de uma visita oficial a Moscou também em fevereiro de 2022. Logo após um encontro com Putin no Kremlin em 16 de fevereiro – poucos dias antes do início das “operações militares” russas –, Bolsonaro afirmou que o Brasil era “solidário à Rússia” e que, por força do interesse brasileiro no gás, petróleo e fertilizantes russos, ambos os países tinham “muito no que colaborar”.1 E mesmo depois de deflagrado o conflito Rússia-Ucrânia, a diplomacia brasileira não assumiu uma postura frontal contra a Rússia, abstendo-se sempre que a Organização das Nações Unidas (ONU) colocou em votação alguma forma de sanção contra o governo Putin.4

Neste trabalho, nosso objetivo é apresentar quais as formações discursivas, conforme definição do filósofo francês Michel Foucault em sua obra A Arqueologia do Saber, publicada originalmente em 1969, constituíram a reconstrução destes fatos no jornalismo impresso brasileiro e português. Esta noção de “formação discursiva” será ainda alargada para as redefinições propostas por Michel Pêcheux, principal teórico do que se convencionou chamar de Análise do Discurso de linha francesa e que, em obra publicada em 1971, procurou dar novos contornos ao conceito foucaultiano de formação discursiva. Esta pretensa oposição entre Pêcheux e Foucault fundamentará a base teórica e metodológica das leituras aqui propostas. Nosso recorte de 16 diários impressos conta com veículos de quatro regiões do Brasil, representadas por algumas das principais capitais do país, e com veículos portugueses da capital (Lisboa), do norte do país (cidade do Porto) e da região centro (onde está localizada a cidade de Coimbra). Na Tabela 1 a seguir, elencamos em ordem alfabética os jornais que compõem nosso objeto de análise:

Tabela 1
Lista de jornais que compõem nosso corpus de análise

Cabe ressaltar que a escolha destas capas procurou atender a critérios de representação e circulação dos respectivos jornais no Brasil e em Portugal. Os oito jornais brasileiros aqui listados estão entre os dez de maior circulação no país.5 No caso dos veículos portugueses, cinco dos títulos aqui reunidos estão entre os mais vendidos entre os chamados jornais “generalistas”6: Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Jornal I, Público e Diário de Notícias. Optamos por incluir ainda o Diário de Coimbra, da cidade de Coimbra, importante polo universitário e terceira maior do país depois de Lisboa e Porto) e dois jornais econômicos que têm distribuição nacional e relevância como formadores de opinião.

Os tipos relativamente estáveis do discurso e as formações discursivas

Antes de passarmos diretamente ao conceito de formação discursiva, cabe reparar na distinção proposta por Mikhail Bakhtin (1992) entre os gêneros primários (aqueles baseados na comunicação ordinária e cotidiana, seja ela oral ou escrita) e os gêneros secundários (constituídos por formas discursivas mais complexas), pois se trata de uma noção de particular importância para a leitura aqui proposta, já que se trata de prestigiar no âmbito dos estudos da comunicação não apenas as formas originadas das linguagens naturais, mas também aquelas advindas do discurso midiático, como as capas de jornais impressos:

Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea (BAKHTIN, 1992, p. 281).

A seleção dos textos que compõem o corpus deste artigo procurou atender ainda ao estabelecimento de um “gênero do discurso” específico, de acordo com a terminologia bakhtiniana. Para o crítico russo, gênero representaria uma sequência linear de certos enunciados, sequência possibilitada pelo uso particular da linguagem na produção de mensagens localizadas em tempo e espaço próprios de uma cultura:

Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus ‘tipos relativamente estáveis’ de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 1992, p. 279).

O uso da linguagem permite, obviamente, o surgimento de infinitas formas discursivas. Entretanto, certos enunciados, apesar de poderem variar no que diz respeito a seu conteúdo e estrutura, manteriam algumas características comuns, ou seja, conservariam o que Bakhtin chama de “tipos relativamente estáveis”. Um dos propósitos de nossa análise está justamente em buscar o estabelecimento desses tipos de enunciados relativamente estáveis, a partir das capas dos jornais impressos de 25 de fevereiro de 2022, após a deflagração do conflito Rússia-Ucrânia. Entretanto, se para Bakhtin a noção de gênero relacionava-se à consignação dos enunciados relativamente estáveis, uma nova formulação surgida no final da década de 1960 mostrar-se-á mais apropriada para a classificação que pretendemos empreender em nosso corpus. Trata-se, como já afirmamos anteriormente, do conceito de formação discursiva estabelecido por Michel Foucault e a partir do qual estarão centradas nossas análises.

Para Foucault, os enunciados, mesmo que distintos em sua forma e dispersos no tempo, são capazes de formar “um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto” (FOUCAULT, 2004, p. 36). É a esse conjunto de enunciados, definidos por certas características comuns (sejam elas linguísticas ou temáticas), que chamamos de formação discursiva.

Para melhor compreendermos este, partimos da ideia de que os discursos, incluindo-se aqui o discurso midiático, fazem uso de certas organizações conceituais, certos agrupamentos de conteúdos (temas) e formas de enunciação, como nos explica Foucault:

Sempre que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação discursiva (FOUCAULT, 1986, p.43).

Desse modo, a formação discursiva supõe uma singularidade, possibilitando a passagem da dispersão para a regularidade. A mecânica que estabelece o funcionamento de uma formação discursiva, para Foucault, supõe um sistema de múltipla relação entre objetos, tipos enunciativos e estratégias. Uma formação discursiva, portanto, “determina uma regularidade própria de processos temporais”, uma vez que articula uma série de acontecimentos discursivos com outras séries de acontecimentos, transformações e processos. Para ele, uma formação discursiva

(…) não desempenha, pois, o papel de uma figura que pára no tempo e o congela por décadas ou séculos: ela determina uma regularidade própria de processos temporais; coloca o princípio de articulação entre uma série de acontecimentos discursivos e outras séries de acontecimentos, transformações, mutações e processos. Não se trata de uma forma intemporal, mas de um esquema de correspondência entre diversas séries temporais (FOUCAULT, 2009, p.83).

Foucault entende ainda que uma formação discursiva ou um sistema de formação compreende:

(…) um feixe complexo de relações que funcionam como regra: ele prescreve o que deve ser correlacionado em uma prática discursiva, para que esta se refira a tal ou qual objeto, para que empregue tal ou qual enunciação, para que utilize tal conceito, para que organize tal ou qual estratégia. Definir em sua individualidade singular um sistema de formação é, assim, caracterizar um discurso ou um grupo de enunciados pela regularidade de uma prática (cf. FOUCAULT, 2009, p. 86).

Para Foucault, portanto, as normas que determinam uma formação discursiva constituem-se por meio de um sistema de relações entre conceitos, estratégias e objetos. A formação discursiva, composta por esses elementos, ultrapassa então a dispersão e ruma em direção a uma certa regularidade.

Cabe referir, entretanto, que também Michel Pêcheux, autor fundante daquilo que se convencionou chamar de Análise de Discurso de linha francesa, estabeleceu uma definição distinta para o conceito de “formação discursiva”. Para uma compreensão mais alargada da hipotética disputa entre Foucault x Pêcheux em torno desta questão, destacamos ao menos quatro artigos, que nos são bastante elucidativos: “Formação discursiva e discurso em Foucault e em Pêcheux: notas de leitura para discussão”, de Roberto Leiser Baronas (2011); “Formação discursiva, redes de memória e trajetos sociais de sentido: mídia e produção de identidades”, de Maria do Rosário Gregolin (2005); “Uma noção com dois fundadores: formação discursiva”, de Thiago Barbosa Soares (2018); e “O conceito de formação discursiva na análise de discurso: contribuição foucaultiana para a constituição de um campo interdisciplinar do saber”, de Pedro Farias Francelino (2005). Se na obra foucaultiana o conceito de formação discursiva aparece inicialmente no livro A arqueologia do saber, lançado em 1969 – conforme já referido –, em Michel Pêcheux o conceito está presente no artigo “A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso”, escrito em 1971 em coautoria com Claudine Haroche e Paul Henry.

Para Pêcheux, seria necessário abandonar epistemologicamente as propostas da linguística de Ferdinand de Saussure e debruçar-se sobre a problemática do discurso a partir do materialismo histórico (aqui, destaca-se a influência dos escritos de um de seus mentores, o filósofo Louis Althusser, segundo o qual as coisas e os objetos poderiam ser colocados em perspectiva com a ideologia). Pêcheux refirmava assim aquilo que ele já vinha desenvolvendo – e que viria a formalizar em escritos posteriores – em torno da Análise do Discurso, segundo a qual discurso e contexto seriam indissociáveis.

Cada formação ideológica constitui assim um conjunto complexo que comporta atitudes e representações que não são nem “individuais” nem “universais”, mas que se referem mais ou menos diretamente a “posições de classe” em conflito umas com as outras (PÊCHEUX, 2011 [1971], p.73). Para Pêcheux, a formação discursiva é “aquilo que, numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc. (PÊCHEUX, 1995, p. 160). Vemos assim que a concepção de formação discursiva em Foucault está subordinada à noção do saber, e não à noção de ideologia, como vai ocorrer com Pêcheux, influenciado pelo viés marxista de Louis Althusser, que prioriza a luta de classes na constituição das relações sociais.

Por outro lado, Pêcheux irá valorizar a relação da formação discursiva com o seu interdiscurso, um exterior heterogêneo com o qual ela mantém relação direta. Para ele, uma formação discursiva é constituída por aquilo que lhe é exterior, conceito fulcral para a constituição epistemológica da Análise do Discurso, que procura buscar as relações de conflito, adesão ou silenciamento entre o próprio discurso e seus interlocutores (Brandão, 1991; Orlandi, 1999). Todo discurso remeteria a outros discursos, sob forma de afirmação, contrato, negação, contradição etc. O sentido da formação discursiva estaria relacionado a um exterior ideológico, vinculado a uma formação ideológica. Assim, tão importante quanto se analisar o discurso seria analisar-se as condições de produção em que ele foi gerado e posteriormente consumido:

O discurso não é um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe só por sua existência; todo discurso marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação, na medida em que ele constitui ao mesmo tempo um efeito dessas filiações e um trabalho (mais ou menos consciente, deliberado, construído ou não, mas de todo modo atravessado pelas determinações inconscientes) de deslocamento no seu espaço (PÊCHEUX, 1997, p. 56).

Como vimos, se as bases teóricas em que Pêcheux baseia a definição do conceito de formação discursiva apontam para uma tradição da herança do pensamento marxista na Europa ocidental, Foucault baseia sua definição numa tradição historicista, a partir da separação entre classes e luta de classes (algo rechaçado inicialmente por Pêcheux na leitura que faz de Foucault). Em síntese, cabe ao analista de discurso investigar as condições complexas (que são, ao mesmo tempo, de ordem linguística e extralinguística) nas quais um determinado enunciado acabou sendo concebido e divulgado.

Neste nosso estudo, optamos por trabalhar inicialmente na esteira da contribuição foucaultiana por entendermos que a tradição historicista seria adequada para o escopo e o propósito que desejamos alcançar. De todo modo, não se pode ignorar a contribuição de Pêcheux, que prefere incluir na análise discursiva as filiações ideológicas de cada discurso, algo que também será de grande utilidade para a nossa leitura. Os linguistas aqui citados, aliás, mostram certo consenso em perceber que a pretensa oposição Foucault x Pêcheux no que diz respeito à definição do conceito de formação discursiva não configura exatamente uma contradição ou uma oposição entre as duas formulações, haja vista inclusive o fato de Pêcheux ter revisado sua posição em escritos ulteriores e se aproximado das postulações foucaultianas (SOARES, 2018; GREGOLIN, 2005).

A guerra, a invasão e a operação militar nas primeiras páginas em língua portuguesa

No dia 25 de fevereiro de 2022, os jornais brasileiros e portugueses procuraram articular um acontecimento discursivo específico (o conflito Rússia-Ucrânia) em meio a diversos processos e séries temporais. Diante das 16 capas que conseguimos reunir, várias correlações, posições, funcionamentos e transformações foram colocadas em marcha, e nosso esforço será o de mostrar a regularidade dessas correlações, posições, funcionamentos e transformações. É como se estivéssemos em busca do levantamento dos ‘tipos relativamente estáveis’ de enunciados (tomamos por empréstimo a expressão de Bakhtin, ainda que não nos refiramos aqui à noção de gênero) que o jornalismo impresso de Brasil e Portugal colocou em marcha para retratar e reconstruir as operações militares russas em solo ucraniano – ou o início da invasão russa no leste da Ucrânia. Em suma, nosso objetivo é identificar quais as formações discursivas ganharam força neste momento histórico particular.

Das 16 capas de jornais reunidos em nosso corpus de análise, faremos inicialmente uma divisão entre os veículos do Brasil e os de Portugal, para depois colocá-los em uma perspectiva ampliada. Metodologicamente, procuramos destacar tanto o discurso verbal (manchetes/títulos e linhas-finas das capas) quanto o discurso visual (imagens ou ilustrações que acompanham o título).

Quatro jornais brasileiros (50%) – Correio Braziliense, Estado de Minas, O Povo e Super Notícia compuseram uma formação discursiva em torno do conceito da guerra e da inequívoca noção de que a Rússia desrespeitou acordos bilaterais internacionais ao bombardear cidades da Ucrânia. Outros dois jornais (37,5%) – Folha de S. Paulo e O Globo –, apesar de não utilizarem o termo “guerra” em suas primeiras páginas, compuseram suas manchetes com verbos (invadir e atacar) cujo teor semântico apontava para uma ação de força ou uma ação pouco legítima provocada pelo governo russo. Por último, dois jornais (25%) – O Estado de S. Paulo e Zero Hora – preferiram dar um enfoque cuja carga semântica não deslegitimava por completo as ações russas (O Estado utiliza a expressão “entrada de tropas russas no leste da Ucrânia”, enquanto o Zero Hora afirma “Tropas russas a caminho de Kiev”). Importa referir ainda que Vladimir Putin está nomeado em três manchetes (Correio Braziliense, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo) e comparece de forma secundária em linhas-finas de outros três jornais (O Globo, Zero Hora, Estado de Minas), o que poderia configurar uma outra formação discursiva em torno da figura do presidente russo. Entretanto, ao contrário do que veremos nos jornais portugueses, não há imagens, ilustrações, charges etc. de Putin nos jornais brasileiros.

No caso dos jornais portugueses, quatro veículos (50%) também assumem a formação discursiva em torno da guerra (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Negócios e Público). Outra formação discursiva recorre à representação de Vladimir Putin por meio de fotografias ou ilustrações, o que ocorre em quatro veículos, ou também 50% (Diário de Coimbra, Diário de Notícias7, Jornal I e O Jornal Económico). E uma formação discursiva original e singular é colocada em marca pelo Jornal de Notícias, com o apoio à Ucrânia e a manchete “Solidários com o povo ucraniano”, que aparece acima de uma bandeira da Ucrânia colocada em fundo preto na página.

Passemos agora a uma leitura mais detalhada de cada um dos jornais, a partir da reflexão em torno das formações discursivas aqui elencadas, inicialmente com os veículos brasileiros. O Correio Braziliense (Figura 1), veículo de Brasília (DF), capital do país, cria uma manchete em que as formações discursivas em torno da ideia da guerra e do presidente Vladimir Putin ganham corpo: “Putin intensifica guerra e faz ameaça ao mundo”. Na linha fina, ao alto, destacam-se termos semanticamente alinhados com a noção de força e coerção (‘invade’, ‘adverte’, ‘enfrentará consequências nunca vistas’, ‘asfixiar’, ‘restrições econômicas’). Ao final, o contraponto vindo das ruas? “Manifestantes pedem paz”. É como se os conflitos estivessem relacionados a atores políticos internacionais (Putin e Biden, presidente dos EUA), enquanto a solução para o fim do conflito derivasse das manifestações públicas. Ainda no alto da página, quatro fotografias mostram uma construção discursiva acusatória perante a Rússia e especialmente Putin, com as inscrições ‘#Stop Russian’, ‘Stop Putin’, ‘Putin = Hitler’, ‘Stop War’, além de uma manifestante em Moscou sendo contida por forças policiais russas. Ao centro da página, a construção do discurso visual bélico é intensificada com as imagens de um prédio atingido por artefatos explosivos na cidade ucraniana de Chuguev (ou Chuhuiv, em ucraniano, ou ainda Chuguyev), ao lado de corpos de pessoas mortas, uma popular ferida um tanque de guerra em operação militar.


Figura 1
Correio Braziliense

O Estado de Minas (Figura 2), de Belo Horizonte (MG) participa de construções discursivas idênticas, cujo discurso visual utiliza a mesma fotografia do prédio atingido no leste da Ucrânia, ao lado de uma imagem de um tanque de guerra e uma cidadã ucraniana em lágrimas, envolta pela bandeira de seu país. A manchete é a que mais destacou o termo guerra na capa, com letras garrafais, em caixa alta, e o título “Guerra na Europa”. As escolhas semânticas da linha fina também apontam para a noção de coerção e força, com os termos ‘reage’, ‘invasão’, ‘maior sanção econômica da história’, ‘tropas russas avançam’, ‘pior crise desde a 2ᵃ Guerra’. Putin comparece na linha fina, não como a gente sobre o qual recai a responsabilidade dos fatos, mas como avalista e coordenador das ações: “Putin se diz preparado”.


Figura 2
Estado de Minas

A formação discursiva da guerra continua nas capas de O Povo (Figura 3) e Super Notícia (Figura 4).


Figura 3
O Povo

Figura 4
Super Notícia

O jornal de Fortaleza (CE) inclui uma imagem que não é utilizada pelos demais veículos aqui analisados e que retrata uma cidadã na rua de Chuguev, com uma fumaça escura ao fundo devido ao bombardeio num aeroporto da cidade. A manchete aponta para uma visão norte-americana do conflito (“Tropas se aproximam de Kiev para derrubar governo, diz EUA”) e é encabeçada por um chapéu que diz “Guerra na Ucrânia”. Embaixo do título, as notas dizem respeito a questões econômicas relacionadas à alta de preços e à inflação. Já o Super Notícia, diário popular de Belo Horizonte (MG), estampa a manchete “O horror da guerra de volta”, também em caixa alta. Acima, as bandeiras da Ucrânia e da Rússia aparecem como se se tratasse de um confronto esportivo, o que faz eco à fotografia e ao texto que estão no alto, à esquerda: “Jogadores brasileiros pedem socorro”, em clara referência às dezenas de futebolistas do Brasil – e seus familiares – que alinhavam na época em clubes de Kiev e Donetsk. A fotografia central repete uma imagem que já havia sido publicada na capa do Correio Braziliense, mas ali com menos destaque: tanques e militares em ação.

À direita, embaixo da imagem, um corpo semântico em torno das ideias de coerção, dor e sofrimento (“Tropas do exército da Rússia invadem a Ucrânia em ataques por terra, mar e ar. Já são mais de uma centena de mortos, e cerca de 100 mil ucranianos deixaram o país em uma fuga em massa”) compõe os demais efeitos de sentido desta capa.

A Folha de S. Paulo (Figura 5) e O Globo (Figura 6), do Rio de Janeiro (RJ) não utilizaram o termo “guerra” em suas capas, mas ambos os jornais estamparam fotos com pessoas mortas na cidade de Chuguev em meio aos bombardeios russos – opção que poderia sugerir debates deontológicos que ultrapassam o escopo deste artigo.


Figura 5
Folha de S. Paulo

Figura 6
O Globo

De todo modo, a manchete da Folha personifica no presidente russo a autoria e a responsabilidade pelos atos: “Putin ataca Ucrânia e deflagra maior ação na Europa após Segunda Guerra”, o que se estende para a linha fina: “Russo bombardeia vizinho e avança no território”. Apesar disto, a imagem de Putin permanece ausente da capa do jornal. O adjetivo ‘maior’ e os verbos ‘atacar’ e deflagrar complementam os efeitos de sentido em torno da extraordinariedade dos fatos. Já O Globo traz a manchete “Rússia ataca Ucrânia e desafia geopolítica global”, com Putin e Biden sendo nomeados na linha fina e intensificando o jogo de forças entre as potências mundiais (“Putin impõe exigências” e “Biden amplia sanções”). Interessante perceber ainda que se trata do único veículo brasileiro que cita o posicionamento do governo brasileiro diante do conflito (“Brasil não condena invasão; Bolsonaro desautoriza vice”), numa alusão à reprovação dos atos russos proferida na véspera por Hamilton Mourão, vice-presidente do Brasil.

O jornal gaúcho Zero Hora (Figura 7), de Porto Alegre, criou uma manchete semelhante à de O Estado de S. Paulo (Figura 8): “Tropas russas a caminho de Kiev”.


Figura 7
Zero Hora

Figura 8
O Estado de S. Paulo

Entretanto, a linha fina do jornal reforça formações discursivas já vistas aqui, com a alusão a termos como ‘invasão’, ‘avanço’ e ‘liberdade’: “Em uma invasão por terra, mar e ar, o exército da Rússia avança sobre o território da Ucrânia e está próximo da capital. Vladimir Putin disse estar preparado para as pressões internacionais. Governo ucraniano afirmou que não desistirá da liberdade”. A imagem que estampa a capa repete as opções de outros veículos brasileiros (trata-se de um prédio atingido por mísseis em Chuguev).

O Estado de S. Paulo, porém, estabeleceu uma formação discursiva distinta das de seus concorrentes: não utilizou os termos ‘guerra’ ou ‘invasão’, nem retratou cenas de bombardeios em solo ucraniano; ao contrário, utilizou uma imagem de tropas da Rússia agrupadas em Rostov, ainda em solo russo, e titulou sua capa (“Putin anuncia entrada de tropas russas no leste da Ucrânia”) com uma carga semântica que alivia as formações discursivas em torno da dor, do conflito ou do sofrimento ucraniano. Até a linha fina do jornal estende o processo de depuração da guerra a que assistimos nos outros sete jornais aqui analisados: “Decisão ocorre dois dias depois de Moscou reconhecer duas áreas separatistas”.

No caso dos jornais portugueses, imperam as formações discursivas em torno do conceito de guerra e da demonização do presidente Putin. O Correio da Manhã (Figura 9), jornal de aspecto mais popular e mais vendido em 2022, opta por estampar a mesma cena presente na capa da Folha de S. Paulo, com um cadáver e o bombardeio em Chuguev.


Figura 9
Correio da Manhã

Os elementos verbais também são inequívocos nos efeitos de sentido de proteção dos valores do mundo europeu ocidental, seja na manchete (“Guerra volta à Europa”), sejam nas demais chamadas de capa (“Putin ordena invasão”; Veja os mapas do ataque russo na Ucrânia”; 1800 soldados portugueses prontos para defender fronteira da NATO”; “Treinador Paulo Fonseca vive angústia com família em Kiev” – em referência ao técnico português que vivia na Ucrânia).

O Público (Figura 10), jornal generalista e de perfil nada popularesco, compõe uma capa semelhante ao Correio da Manhã: “A guerra regressa à Europa”. Entretanto, refuta-se aqui a presença de imagens com cadáveres, mas emprega-se uma fotografia que, possivelmente, também faz referência ao bombardeio de um aeroporto em Chuguev. De resto, o início da linha fina inclui o veículo na mesma formação discursiva que orbita em torno das responsabilidades da presidência russa pelo conflito: “Putin invade Ucrânia, numa das maiores ofensivas no continente desde a II Guerra Mundial”.


Figura 10
Público

Já o Negócios (Figura 11) utiliza como imagem central de sua capa uma fotografia bastante reproduzida em jornais de todo o mundo, com uma cidadã ucraniana trazendo ataduras na cabeça e o rosto ensanguentado.


Figura 11
Negócios

A manchete “A madrugada da guerra” insere o jornal na mesma formação discursiva já aqui contemplada em outros veículos, qual seja, a noção do confronto bélico desencadeado pelas forças russas. De resto, as chamadas de capa referentes ao conflito espalham-se por temas econômicos, dentro do escopo editorial do veículo.

O Diário de Notícias (Figura 12), por sua vez, destaca-se entre todos os jornais de nosso corpus por duas razões: estampou em letras garrafais vermelhas, em caixa alta e sobre fundo preto, o termo ‘guerra’ ocupando 1/3 do espaço da capa; estampou ainda a imagem de Vladimir Putin com manchas vermelhas sobre o corpo (como se fossem marcas de sangue) e dedo médio em riste, numa composição cromática e imagética que recuperam parte do cartaz do filme O Poderoso Chefão (The Godfather, 1972), de Francis Ford Coppola. Em outro interdiscurso, o dedo em riste de Putin remonta a diversas imagens do líder da Revolução Russa, Vladimir Ilyich Ulianov (popularmente conhecido como Lênin), e aos pôsteres de propaganda soviética que o retratavam como um ser superior:


Figura 12
Diário de Notícias

Figura 12a
Pôster de propaganda da Revolução Russa com a inscrição: “Adiante com a revolução mundial sob a bandeira de Lênin!”

A linha fina assevera que “Invasão da Ucrânia pela Rússia faz mais de cem mortos. Mundo responde com sanções e a próxima arma chama-se SWIFT”, em referência ao código de transações bancárias mundial que poderia ser bloqueado a transações com bancos russos. De todo modo, o Diário de Notícias é o único veículo aqui estudado que dá voz a Putin, com a transcrição de falas do presidente russo: “Putin justifica-se: ‘Desmilitarização e desnazificação da Ucrânia é um dos objetivos da operação militar’.”

O Jornal I (Figura 13) também recorre a uma interessante construção interdiscursiva ao substituir a imagem de Lenin pela do presidente Putin num célebre pôster de exaltação da Revolução Russa (Figura 13a). Assim como a Revolução de 1917 originou a obra “Dez Dias que Abalaram o Mundo”, do jornalista norte-americano John Reed, as ações de Putin provocaram “O dia em que a Europa tremeu”, segundo manchete do I. No início da linha fina, a lembrança de que o risco nuclear não poderia ser desprezado.


Figura 13
Jornal I

Figura 13a
Pôster de Viktor Ivanov: “Lênin viveu, Lenin vive, Lenin viverá!”. Poeta Vladímir Maiakóvski

O Jornal Econômico (Figura 14) também recorreu a uma ilustração com o rosto de Putin, dentro das formações discursivas mais recorrentes no jornalismo português diante deste conflito: a de marcar a noção de ‘guerra’ ou de ‘invasão’ e a de presentificar a figura de Putin como o maio responsável por esse estado de coisas. A manchete constrói esse efeito de sentido de maneira peremptória: “Putin invade Ucrânia e ameaça Europa”. As demais chamadas de capa transitam por questões económicas (impacto na economia, aumento de preços de petróleo, gás e ouro) e pela “cautela” do Ocidente em querer avançar com sanções, mas de forma a evitar o conflito com a Rússia.


Figura 14
O Jornal Económico

O Diário de Coimbra (Figura 15) destaca-se também da cobertura ordinária de jornais luso-brasileiros com a opção por estampar sua capa com as cores azul e amarela da bandeira ucraniana. Além disso, logo abaixo do nome do jornal, incluiu a inscrição “Solidários com a Ucrânia” e equiparou Putin a Adolf Hitler com o título: “Putin igual a Hitler contra a democracia”. Duas das chamadas abaixo da manchete são ainda mais corrosivas: “Ofensiva militar ordenada pelo ditador fascista matou dezenas de ucranianos”; e “Comunidade internacional promete sanções devastadoras ao regime russo”. Para intensificar ainda mais estes efeitos de sentido, a imagem selecionada reúne um jovem na Romênia ostentando um cartaz em que os rostos de Hitler e Putin criam uma simbiose gráfica. A legenda da fotografia ainda afirma: “Mundo acordou em choque depois do ditador Putin ter atacado a Ucrânia tal como Hitler, em 1939, fez na Polônia desencadeando a II Guerra Mundial”. Percebe-se aqui a recorrência de termos (“ditador, fascista, choque, democracia etc.) que fazem recair sobre os ombros de Vladimir Putin de todo o ônus pela ação na Ucrânia.


Figura 15
Diário de Coimbra

Por último, temos uma formação discursiva que avança ainda mais na manifestação de apoio à causa da Ucrânia e na retirada temporária da tal “imparcialidade” jornalística, conceito frequentemente alardeado por empresas de comunicação (na mesma medida em que é desmontado pelos analistas de discurso). Trata-se da capa do Jornal de Notícias (Figura 16), que opta por um fundo todo preto ocupado ao centro pela bandeira da Ucrânia. Ao alto, a manchete (ou inscrição) “Solidários com o povo ucraniano”, que vem traduzido ao fundo também em idioma ucraniano.


Figura 16
Jornal de Notícias

Como costuma ocorrer em ocasiões extraordinárias (lutos de celebridades internacionais, atentados terroristas, acidentes etc.), não é incomum jornais usarem um fundo preto em suas capas para representar imageticamente a ideia de luto e dor diante de determinado fato. Também não deixa de ser frequente o uso de bandeiras nacionais em veículos de comunicação quando de se quer homenagear ou celebrar algum acontecimento específico relacionado com alguma nação. Todavia, o inusitado desta capa do Jornal de Notícias está justamente no fato de o diário português assumir explicitamente a adesão a um dos lados envolvidos num conflito que reúne dois países com quem Portugal mantém relações diplomáticas e com os quais estabeleceu um histórico amistoso de recebimento de fluxos migratórios vindos do leste europeu nas últimas três décadas.

Vê-se desse modo que estas primeiras páginas do Jornal de Notícias e do Diário de Coimbra, com formações discursivas mais “originais”, acabaram também por colocar em marcha um dos fenômenos da “construção social de dois níveis”, expressão utilizada pelo filósofo francês Pierre Bourdieu (1997) a respeito das competições esportivas dos tempos de hoje. Para Bourdieu, o atleta e sua performance fazem parte de um espetáculo que é produzido duas vezes: numa primeira instância, temos a produção operada pelos agentes esportivos strictu sensu, ou seja, todas as pessoas que estão diretamente envolvidas na realização e condução do jogo (atletas, juízes, comissão técnica, corpo médico, organizadores e, de certa maneira, a plateia); numa segunda instância, há a produção do espetáculo realizada pela mídia – seja pelo discurso radiofônico, televisivo ou jornalístico, seja pela edição de imagens da TV.

Nesta segunda instância, trava-se outra disputa, alheia àquela que ocorre no plano esportivo: trata-se, aqui, da briga pelo furo ou pela audiência, resultado de pressões por vezes maiores do que aquelas com que os atletas se deparam no campo de jogo. Em nosso caso, a briga pela audiência e pela originalidade é o que pode ter motivado, em outro nível, alguns jornais analisados a buscarem opções discursivas em que o presidente russo, Vladimir Putin, comparecesse visualmente nas capas por meio de alguma imagem ou ilustração – recurso aliás não presente no jornalismo impresso brasileiro aqui destacado.

A título de conclusão

As formações discursivas que buscamos reunir a propósito das 16 capas de jornais brasileiros e portugueses diante das ações russas em solo ucraniano em fevereiro de 2022 reforçam a tentativa de superação daquilo que Mikhail Bakhtin chamou de “abstração dos aspectos expressivos” no jornalismo impresso atual, em que a subjetividade do locutor é por vezes mascarada ao extremo por meio de um estilo que se pretende ou que se quer “objetivo-neutro”. Esse estilo pressupõe uma espécie de contrato de leitura entre o destinatário e o locutor, contrato que se manifestaria à custa de uma recusa inconsciente da expressividade e em que diversos textos acabam se assemelhando. Não é à toa que metade das capas de jornais aqui reunidas tenham composto uma formação discursiva que orbitou em torno do conceito da guerra declarada pela Rússia em função da invasão e do bombardeamento de um país vizinho.

O mais óbvio diante dos acontecimentos aqui retratados seria justamente destacar o horror diante da guerra, com imagens de destruição e armamentos bélicos. Assim, não estranha que o conceito de guerra e outros termos já aqui elencados, como, ameaça, risco nuclear, conflito, dor, desespero, invasão, bombardeio entre outros, tenham sido utilizados por diversos jornais para reconstruir os acontecimentos de 24 de fevereiro de 2022.

Algumas capas de jornais aqui analisadas, por outro lado, procuraram não repetir o coro da maioria, como foram o caso em Portugal do Jornal de Notícias e a solidariedade ao povo ucraniano e o Diário de Coimbra com a simbiose Hitler-Putin; os dois veículos estabeleceram formações discursivas que se distanciaram do mecanismo ordinário de fabricação do jornalismo convencional.

A propósito de algumas diferenças entre o jornalismo brasileiro e português diante do conflito Rússia-Ucrânia, cabe perceber uma maior adesão dos veículos lusos à causa ucraniana e à demonização de Putin como o grande responsável pela deflagração da guerra, conceito percebido de certa forma unânime pela opinião pública, pelo Parlamento e pelas forças políticas em Portugal8. Pesam aqui, para o povo português, a sensação do “pertencimento europeu” e a ideia de que a democracia e a ordem ocidental estão sendo colocadas em xeque pelo governo russo.

No caso brasileiro, ainda que a formação discursiva em torno da guerra tenha aparecido com forte presença, chama-nos a atenção, até de forma surpreendente, o fato de O Estado de S. Paulo ter optado por uma formação discursiva menos incisiva com relação à Rússia. Outra opção discursiva foi não representar o presidente Putin por meio de registros imagéticos, ao contrário dos efeitos de sentido observados nos veículos lusos. No que diz respeito às questões políticas e de opinião pública, não há no Brasil uma mobilização da classe política nem dos partidos no sentido de viabilizar a presença de Zelensky no Congresso nacional. Como já referido no início deste artigo, a própria Presidência da República não demonstrou apoio à causa ucraniana – antes pelo contrário (algo destacado nos jornais brasileiros por O Globo com a frase “Brasil não condena invasão; Bolsonaro desautoriza o vice”).

Para encerrar, cabe dizer que nosso exercício de análise proposto neste artigo, em vez de colocar em evidência as oposições entre Foucault e Pêcheux em torno da conceituação de formação discursiva, procurou mostrar quais agrupamentos de conteúdos (temas) e de formas de enunciação, predominaram nas capas de jornais brasileiros e portugueses em 25 de fevereiro de 2022, um dia após as ações russas na Ucrânia. Procuramos assim perceber, na individualidade singular de cada sistema dos veículos impressos, as características e particularidades dos discursos e dos enunciados a partir de suas regularidades, aproximações e distanciamentos, como preconizava Foucault (2004). Ao mesmo tempo, como defendia Pêcheux, ratificamos a ideia de que não há discurso neutro: todo discurso produz sentidos que expressam as posições sociais, culturais, ideológicas dos sujeitos da linguagem; assim, é necessário ter conhecimentos linguísticos e extralinguísticos para melhor se compreender o discurso, já que sem história não há sentido, ou seja, é a inscrição da história na língua que faz com que ela signifique.

A reconstrução discursiva, porém, não significa necessariamente desfiguração do objeto. O jornal processa o recorte da realidade a partir de interpretações subjetivas e dialógicas, segundo um interdiscurso perpassado igualmente por questões ideológicas, o que envolve interesses econômicos, políticos, culturais etc. Daí os efeitos entre locutores e a dimensão simbólica dos fatos, algo que quisemos destacar ao longo destas linhas, usando como exemplo um marco na história contemporânea reconstruído a partir de formações discursivas distintas, embora pouco conflitantes.

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Notas

4 Em 07/04/2022, a Assembleia Geral da ONU aprovou a exclusão da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da entidade, com 93 votos a favor, 24 contra e 58 abstenções (incluindo-se aqui a representação brasileira).
5 A despeito da contínua queda de leitores do jornal impresso no Brasil, houve em contrapartida o aumento de vendas nas versões digitais. Ver dados atualizados em junho de 2021 em matéria do portal Poder 360, disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/circulacao-impressa-de-grandes-jornais-cai-12-nos-5-primeiros-meses-do-ano/. Acesso em: 15 jun. 2022.
6 Conforme dados de novembro de 2021 em matéria do Correio da Manhã de 30/11/2021, disponível em https://www.cmjornal.pt/tv-media/detalhe/cm-reforca-lideranca-e-e-o-jornal-diario-preferido-dos-portugueses. Acesso em: 10 jun. 2022.
7 Entendemos que a capa do Diário de Notícias (Figura 12) traz elementos que permitem a filiação a duas formações discursivas principais, a da guerra e da figura de Putin.
8 Em Portugal, os partidos políticos com representação parlamentar na Assembleia da República condenaram veementemente a “invasão” russa na Ucrânia. O Presidente da República (Marcelo Rebelo de Sousa) e o Primeiro-Ministro (António Costa) chegaram inclusive a convidar o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky a participar de uma sessão do Parlamento, o que se deu em 21 de abril de 2022. A única exceção a esse apoio foi formalizada pelo Partido Comunista Português, que também se recusa a usar o termo “guerra”, ao contrário dos demais partidos.

Autor notes

Editora responsável: Maria Ataide Malcher

Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol

Declaração de interesses

Conflito de interesse

O autor declara que não há conflito de interesse.



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