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Narrar-se e “pôr em comum”: história de vida e comunicação de proximidade

Narrarse y “puesta en común”: historia de vida y comunicación de proximidad

Resumo

O artigo reflete o método História de vida, na perspectiva da comunicação de proximidade, desenvolvido como aprofundamento teórico-metodológico na tese “Proximidade e confissões: experiências em situação de rua e a construção de si. Histórias de vida e resistência no Centro Antigo de Salvador, Bahia”. Na confluência desses dispositivos metodológicos paradoxais foram evidenciados os aspectos “do encontro de mundos” e “a verdade do outro”, possibilitando avaliar o peso atribuído à sensibilidade, ao respeito pelo outro, e também à justa medida em se colocar, valorizando as situações dialógicas entre narradores e pesquisador, envolvidas na pesquisa qualitativa.

Palavras-chave:
História de vida; Comunicação de proximidade; Intersubjetividade; Sujeitos em situação de rua; Centro Antigo de Salvador

Resumen

El artículo refleja el método Historias de vida, desde la perspectiva de la comunicación de proximidad, desarrollado como profundización teórico-metodológica en la tesis “Proximidad y confesiones: experiencias sin hogar y la construcción de sí. Historias de vida y resistencia en el Casco Antiguo de Salvador, Bahía”. En la confluencia de estos dispositivos metodológicos paradójicos se destacaron los aspectos del “encuentro de mundos” y de “la verdad del otro”, lo que permitió evaluar el peso atribuido a la sensibilidad, al respeto por el otro, y también a la justa medida de situarse, valorando las situaciones dialógicas entre narradores e investigador, involucrados en la investigación cualitativa.

Palabras clave:
Historia de vida; Comunicación de proximidad; Intersubjetividad; Sujetos sin hogar; Casco Antiguo de Salvador

Abstract

This paper reflects the life history method, from a proximity communication approach, further elaborated in-depth as a theoretical-methodological frame of reference in the thesis “Proximity and confessions: experiences in homelessness and building of oneself. Life histories and resistance in Historic Downtown Salvador, Bahia”. At the interception of these paradoxical methodological frameworks, the aspects of “the meeting of worlds” and “the truth of the other” were highlighted, thus enabling an assessment of the role assigned to sensitivity, respect for the other and the fair extent to which one places oneself, while also valuing the dialogic contexts between narrators and the researcher embodied in qualitative research.

Keywords:
Life history; Proximity communication; Intersubjectivity; Homeless subjects; Historic Downtown Salvador

Introdução

A proposta metodológica da pesquisa de doutorado intitulada “Proximidade e confissões: experiências em situação de rua e a construção de si. Histórias de vida e resistência no Centro Antigo de Salvador, Bahia”1 1 A tese, defendida em 2021 junto ao PosCultura - IHAC/UFBA, considerou a questão sobre como se constroem e se expressam as identidades de sujeitos que vivem ou viveram em situação de rua no Centro Antigo de Salvador e produziu, através do método de História de vida, quatro autonarrativas. Destas, se sobressaem duas perspectivas analíticas complementares: se de algum modo, todas as quatro histórias de vida produzidas poderiam ser amarradas por um fio que as atravessa implicando um Outro institucional cuja voz no fundo ecoa a presença pastoral, - e se através do conceito de Quadro Social elaborado por Goffman (2012), a partir de esquemas interpretativos que organizam as experiências sociais, Sampaio (2004) nos leva a compreender a caridade como estrutura social -, emergem também, das memórias e experiências que constituem aquelas identidades narrativas, sujeitos éticos, entre gestos de reflexividade, resistência e de “cuidado de si” (FOUCAULT, 2006). orientava o delicado encontro das subjetividades dos entrevistados e da pesquisadora, e um princípio metodológico, relativo à postura comunicativa do pesquisador, evidenciou-se no momento de encontro com os participantes da pesquisa. Foi possível cogitar o método de História de vida associado à ideia da comunicação como dispositivo paradoxal de proximidade e distância, desenvolvendo-se este aspecto durante o estágio doutoral, realizado em 2019, na Universidade da Beira Interior, Portugal, junto ao Departamento de Comunicação e Artes e da Unidade de I&D Comunicação, Filosofia e Humanidades - LabCom. IFP, com o estudo de textos de autoria de Paulo Serra (2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
; 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
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), nos quais este professor aborda o conceito de sensibilidade na teoria da comunicação de Lévinas. Para o filósofo francês, “antes de ser ‘circulação de mensagens’, e subjacente a ela, a comunicação é ‘proximidade’, ‘relação de proximidade’ ou ‘relação com o Próximo’, ‘aproximação e contacto do próximo’ (LÉVINAS, 1994, p. 224, 228, 235)” (SERRA, 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
, p. 5); sobretudo, neste arcabouço teórico, a comunicação enquanto proximidade, ainda que em origem assimétrica, e justamente por isto, implica a questão ética, que corresponderia à “responsabilidade pelo Outro”.

Em relação à História de vida, há uma gama de artigos acadêmicos que a referem enquanto método, em sua maioria, embasados nos escritos de Paul Ricoeur. Neste artigo, nos interessou evidenciar a relação da História de vida com elementos próprios da autonarrativa (método autobiográfico) e a sua aplicação: das observações, diálogos e registros ocorridos no desenvolvimento do método ao longo do estudo, insurgem as situações comunicativas paradoxais.

Aproximando métodos e experiências: o fazer da pesquisa

A pesquisa de doutorado, de caráter qualitativo, envolveu a produção e o registro de histórias de vida de sujeitos que vivem ou viveram em situação de rua no Centro Antigo de Salvador, no estado da Bahia, Brasil. A escolha por uma abordagem qualitativa, e por este método em particular, foi justificada pela compreensão de que as memórias e experiências dos sujeitos em circunstâncias de rua demandariam uma maneira de trabalho mais porosa e fluida, passível de configurar, através de um fazer reflexivo e ressignificativo, as perspectivas individuais e coletivas dos sujeitos habitantes daquele mundo social possível2 2 Tomamos de empréstimo a expressão de Galindo Cáceres (1997), em referência a representações (comparáveis e complementares entre si), de como um certo mundo está configurado, em determinado momento. Estas representações assumem significado quando estão relacionadas aos outros objetos configurados. (GALINDO CÁCERES, 1997GALINDO CÁCERES, L. J. Sabor a ti: metodologia cualitativa em investigación social. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1997.).

Em termos literários, no século XVIII, e segundo certo consenso, a partir de As Confissões de Rousseau, a aparição do eu possibilitou a elaboração do gênero autobiográfico, valorizando as memórias, os escritos em diários íntimos ou epistolares, enquanto espaços de autorreflexão decisiva para o estabelecimento do individualismo como característica do Ocidente. Esta tendência se replicou em termos científicos, com o surgimento, especialmente nas ciências sociais, de métodos que consideravam as narrativas biográficas enquanto fontes de informação, servindo à curiosidade científica da vida comum (ARFUCH, 2007ARFUCH, L. El espacio biográfico. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.).

Histórias de vida podem referir a um produto, processo ou meios para o obter. Enquanto técnica de pesquisa qualitativa de investigação social, a História de vida surgiu no início do século XX, influenciada pela entrevista jornalística e embasada na psicologia social do filósofo estadunidense Georg Hebert Mead (1863-1913). Ganhou relevância, como parte de uma tradição que procurava compreender as influências socioculturais nas expressões e práticas individuais, sobretudo nos anos vinte, em produções do Departamento de Sociologia da Universidade de Chicago, sob a coordenação de Robert Ezra Park.

Com o declínio da Escola de Chicago, as histórias de vida quase foram extintas; no período pós-Guerra, o mundo acadêmico passou a privilegiar o objetivismo e os métodos quantitativos. Somente na metade dos anos setenta, a sociologia francesa viria a descobrir este método (SANSEAU, 2005SANSEAU, P. Les récits de vie comme stratégie d’accès au réel en sciences de gestion: pertinence, positionnement et perspectives d’analyse. Recherches Qualitatives, v. 25, n. 2, p. 33-57, 2005.). Ao longo das décadas, houve variações na sua aplicação, e nos parâmetros de interpretação de seus resultados, entre os autores que trabalharam com o método, abarcando uma diversidade de posições sobre a natureza da história de vida, sua estrutura, as condições de produção e análise, as técnicas de realização, exploração e comunicação.

Considerando a necessidade de elaboração do corpus da pesquisa de doutorado que aqui referimos, as histórias de vida foram produzidas a partir de entrevistas em profundidade com quatro narradores, duas mulheres e dois homens adultos, identificados apenas pela letra inicial de seus nomes (Sr. L., Sra. M., Sr. F. e Sra. N.) 3 3 São aproximadamente coetâneos (têm a mesma faixa etária, entre 55 e 58 anos), e apresentaram 10 anos ou mais de experiência em situação de rua, correspondendo, nestes quesitos, aos percentuais registrados em relação à população em situação de rua em Salvador, Bahia (CARVALHO et al., 2017). A ligação destes narradores com a área central da cidade obedece a uma gama variada de atividades cotidianas, em tempos distintos, passado e presente. Todos possuem em comum a participação em projetos sociais. . Optamos pelo número de informantes da pesquisa a partir da escolha direcionada ao detalhamento e aprofundamento das histórias de vida, em detrimento de um maior número de sujeitos narradores, seguindo indicativos metodológicos encontrados na literatura. Por sua vez, o método proposto por Galindo Cáceres (1997)GALINDO CÁCERES, L. J. Sabor a ti: metodologia cualitativa em investigación social. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1997. menciona ao menos três momentos distintos para a produção das histórias de vida, a saber:

1ª. Exploração, quando se realiza o primeiro contato com o narrador;

2ª. Descrição: retomando-se a história espontânea do narrador, registrando, em detalhes, os elementos do texto e as circunstâncias do registro. Ao informante deve ser solicitada a participação dele no ordenamento dos temas a serem apresentados e discutidos. Esta etapa prevê o retorno ao informante para que este avalie, valide ou refute a leitura do analista-pesquisador;

3ª. Análise de fundo da História de vida: a partir dos dois registros anteriores, ocorre a seleção dos componentes básicos e centrais e sobre estes se discute com o narrador. Todo o material da segunda etapa é novamente ordenado, segundo critério geral de situações e objetivos vitais. A leitura analítica anterior é apresentada ao informante para o seu comentário e ajuste. O montante de informações possibilita ao analista criar hipóteses sobre os eixos de vida do informante, elaborando uma terceira guia de entrevista, segundo os interesses e as opções temáticas descritas pelo informante. A tematização desta última etapa aperfeiçoa a informação sobre a história de vida e a relação analítica do ator social com a sua história.

Nestes termos, buscamos garantir, com exceção de um dos casos, o mínimo de três entrevistas em profundidade com cada narrador, não rejeitando a ideia da continuidade, caso compreendêssemos haver ainda aspectos significativos da história de vida, imprescindíveis à reflexão teórica, sem terem sido abordados. Fontanella e Magdaleno Júnior (2012)FONTANELLA, B. J. B.; MAGDALENO JÚNIOR, R. Saturação teórica em pesquisas qualitativas: contribuições psicanalíticas. Psicologia em Estudo, v. 17, n. 1, p. 63-71, 2012. advogam ainda a sensibilidade do pesquisador e dos participantes, a respeito de elementos cognitivos e afetivos, visando a determinação da suficiência (saturação) dos encontros e o volume dos dados produzidos.

Na prática, para cada um dos narradores, à exceção de uma das mulheres, ocorreram três encontros formais, em locais escolhidos pelos informantes da pesquisa, de acordo as possibilidades e circunstâncias. A série de entrevistas em profundidade sofreu variação no que se refere à intervenção da pesquisadora: a primeira entrevista, tentamos conduzi-la com a menor interferência possível, deixando livres, ao entrevistado, tanto a escolha dos temas, quanto as associações entre estes. A segunda e terceira entrevistas, todavia, contaram com maior interferência, na forma de indagações e interjeições, conferindo um caráter de diálogo e expressando aproximação entre o pesquisador e o narrador.

O grupo de narradores poderia ser dividido e diferenciado através de muitos aspectos. O de maior peso talvez seja a consideração sobre seus momentos de vida atuais em relação às circunstâncias de rua ou, do seu contrário, por meio da aquisição do lugar próprio: o Sr. L. e a Sra. M. possuíam casas próprias há mais ou menos 5 anos, através de programas sociais. O Sr. F. e a Sra. N. saíram recentemente das circunstâncias de rua e de abrigamento, passando a receber o auxílio aluguel pago pela Prefeitura Municipal, com o qual alugavam espaços de moradia pequenos e precários. Os dois informantes que já possuíam moradia própria preferiram estes locais para a realização ou continuidade das entrevistas, permitindo à pesquisadora o conhecimento de outros espaços e elementos que compõem suas vidas privadas, quando foi possível, por exemplo, perceber a forma que organizam, cuidam e embelezam suas casas, objetos que valorizam, além de parte das dinâmicas cotidianas de suas vidas. Os outros dois narradores, ainda em circunstancias de abrigamento ou de aluguel social, optaram por conversas em espaços públicos, praças, lanchonetes ou abrigos de pontos de ônibus.

Para os casos que abarcavam circunstâncias atribuladas próprias às cenas das entrevistas no campo - entrevistas realizadas na rua, ou em estabelecimentos comerciais, em meio a passantes e barulho dos carros, com interrupções frequentes, e etc. -, foi preciso refletir as implicações das condições de rua na subjetividade do sujeito narrador, na viabilidade de evocar memórias e de elaborar uma autonarrativa em contextos adversos. Assim compreendemos, inclusive, a saturação mais rápida, e a maior circularidade e repetições do discurso no caso da narradora com a qual realizamos apenas duas entrevistas em profundidade, sem descartar a ação de mecanismos de escape e de preservação da sua subjetividade, enquanto “hábitos defensivos frente a la experiencia de interioridade.” (GALINDO CÁCERES, 1997GALINDO CÁCERES, L. J. Sabor a ti: metodologia cualitativa em investigación social. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1997., p. 147).

Diante destas e de outras especificidades verificadas no campo para a produção das histórias de vida, refletimos o paradoxo da comunicação, enquanto dispositivo de proximidade e distância, para o fazer da experiência acadêmico-científica que implica o agir no sentido das possibilidades de realização da pesquisa.

“O pôr em comum” e a distribuição de uma força

No âmbito deste artigo, tomamos em maior particularidade aspectos da produção da história da Sra. M. para exemplificar situações comunicativas ocorridas no campo, ainda que também mencionemos circunstâncias dialógicas envolvidas na elaboração das demais histórias de vida.

Nas entrevistas em profundidade realizadas com a Sra. M., a experiência da interioridade (GALINDO CÁCERES, 1997GALINDO CÁCERES, L. J. Sabor a ti: metodologia cualitativa em investigación social. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1997.; GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da Modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.) foi assinalada por incômodos, explicitados pela narradora. Houve desistência, em determinado momento, e um longo período para a conclusão de sua participação na pesquisa. Foram realizadas três entrevistas em profundidade com a Sra. M.: a primeira, em 22/08/2018, a segunda poucos dias após, em 04/09/2018, e a terceira, somente quase cinco meses depois daquele segundo encontro. Ocorreu que, poucos dias depois da segunda entrevista, no dia 24/10/2018, a Sra. M. cancelou por telefone a sua participação na pesquisa, antes, porém, reforçando a indicação de outros participantes, e valorizando a iniciativa.

Diante da sua negativa, naquele momento, a pesquisadora apenas reafirmou que sim, a decisão seria dela, e a qualquer tempo. De fato, o último encontro teria sido marcado por um desconforto da Sra. M. em narrar algumas de suas memórias mais sofridas, por momentos de silêncio, de emoção, e pelo desejo de esquecimento (RICOEUR, 2007RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.):

[...], num é fácil. Vê a pessoa assim e pensa que Dona M. sofreu? Sofri! O que já passei, foi um sofrimento, não é brincadeira não, pra gente chegar onde a gente chega a gente passa por meio mundo de coisa! [...]. Eu sei que foi luta, foi muita luta, eu não gosto nem de me alembrar dos passado que eu já passei! ...sofrimento [ela se emociona], a pessoa dá a volta por cima, meio mundo de coisa, viu? Não é? [...]. Se eu disser uma coisa aqui, pra encurtar a conversa, se eu disser uma coisa a você aqui, que eu não gosto nem de me alembrar, quando eu vivia essa vida do mundão [vai diminuindo a voz, por fim, sussurra algo inaudível, proponho desligar o gravador]. (Sra. M., entrevista, 2018).

Passados mais de três meses, em uma das reuniões do Grupo da Pastoral do Povo de Rua, quando a pesquisadora a reencontrou, decidiu dizer a Sra. M. que não iria desistir da história dela. Ela pareceu satisfeita e contente, e pediu um tempo para analisar a questão. Informou que faria uma cirurgia na semana seguinte, e a pesquisadora se dispôs a acompanhá-la, conduzindo-a até o hospital, e em visitas em sua residência ocorridas após o procedimento médico. No dia 25/01/2019 a pesquisadora foi à casa da Sra. M., e ela estava acompanhada pelo Sr. F., outro informante da pesquisa. A pesquisadora já havia realizado dois encontros para entrevistas com o Sr. F. e, naquele momento, ele parecia disposto a continuar narrando o que se passava em sua vida. Falou do nascimento da neta, da perda recente de mais parentes. A Sra. M. observava com atenção e parecia de algum modo estimulada a voltar a contar a sua própria história. Após a saída do Sr. F., a pesquisadora combinou com a Sra. M. de lhe apresentar a proposta de conto que havia escrito com base nas entrevistas realizadas anteriormente, para que então ela pudesse definir a sua participação na pesquisa, e assim ocorreu. A terceira e última entrevista, representando seu reingresso à pesquisa, foi realizada no dia 29/01/2019.

Avaliamos que a Sra. M. precisou de tempo para refletir e se situar naquilo que implica elaborar e contar a sua história, também para compreender o movimento de aproximação da pesquisadora. Pareceu talvez decisivo o fato da pesquisadora afirmar a relevância da sua narrativa e da sua participação na pesquisa, além de ter sido testemunha, em alteridade, do entusiasmo do Sr. F. ao narrar os acontecimentos vividos por ele, ao tempo em que os sucessivos contatos ocorridos entre a Sra. M. e a pesquisadora, não específicos às cenas de entrevistas, estabeleciam aberturas para o desenvolvimento da confiança.

De maneira mais ampla, a nosso ver, do acumulado das circunstâncias de vulnerabilidade social, resultam traços de insegurança e de desconfiança vivenciados pelos narradores. Tratam-se de desconfianças que têm razões de existir, na medida em que os vínculos e as formas de confiança tradicionais foram rompidos; que são limitados os acessos aos sistemas de reencaixe, a exemplo da possibilidade de compreensão e de exercício de “novas confianças” que são exigidos pelos sistemas peritos (GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da Modernidade. São Paulo: Editora UNESP, 1991.), além da própria imperícia dos “sistemas peritos” que falham ao atender às demandas naquele mundo social: como crer na administração pública e nos programas de governo que não garantem as necessidades mínimas da população? Como ter confiança na instituição policial e no judiciário, num contexto de violações reiteradas e impunes?

O primeiro momento de aproximação da pesquisadora com o público da pesquisa refletiu, portanto, seja o tempo da pesquisa que buscava alinhar o princípio da objetividade científica com as subjetividades dos indivíduos envolvidos na investigação, seja o encontro destas subjetividades. As circunstâncias vivenciadas no campo, e aquelas que abarcam a produção de sentido das histórias de vida enquanto recursos de pesquisas qualitativas, são certamente bastante complexas e, em muitas vezes extrapolam a dimensão técnica.

Em termos de dificuldades, gostaríamos de assumir que também foram vividos pela pesquisadora momentos de insegurança, nos quais ela se viu na iminência de colocar tudo a perder. Diversas vezes lembrou-se das advertências de Bourdieu (2003BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003., p. 703), sobre as “entrevistas fracassadas”, e certamente foram cometidos muitos equívocos, por parte da pesquisadora, naqueles momentos de aproximação e de encontro. Do menor para o maior grau, podemos mencionar: o equívoco no uso de alguns termos, por não conhecer suficientemente a linguagem e os termos próprios utilizados naquele universo social, a exemplo da palavra “barriga” para dizer de “gravidez”, ou da expressão “morar com”, “arrumei uma mulher”, ou “amigar”4 4 Compreendemos posteriormente que essa última forma expressa uma das variáveis do estudo, que é a questão religiosa. O amigado é aquele que “não teve a benção de Deus e vive em pecado”; nessa construção, o pecado é relevado na relação pelo laço de amizade entre o homem e a mulher. , ao invés de “casamento/casar”; perguntas forçadas ou mal colocadas, por inconsciência ou ignorância (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.).

Um conceito cunhado por Bourdieu (2003BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003., p. 695), que se avizinha da ideia de comunicação como proximidade, é o de “comunicação não-violenta”. Ao considerar as estruturas objetivas às quais a relação de pesquisa está subordinada e a dissimetria cultural entre narradores e pesquisador, o autor sugere tentar evitar as objetivações das subjetividades dos informantes, e garantir a participação intelectual e afetiva do pesquisador.

A partir deste último aspecto, poderíamos retomar a questão central desse artigo, e avaliar em que medida o método da história de vida implica o paradoxo da comunicação como proximidade e distância, entre pesquisador e sujeitos informantes da pesquisa. Antes, porém, caberia nos perguntar: no fazer da pesquisa, o que exemplificaria seu paradoxo comunicacional?

Na relação assimétrica que se estabelece, e que se evidencia no campo, a comunicação como proximidade e distância tornaria indispensável assumir que algo escapa ao poder do eu proponente pelo jogo (a pesquisa)? Poderia aludir à necessidade da partilha, entre o pesquisador e demais sujeitos da pesquisa, de “pontos de referência”, a exemplo da informação dos aspectos de relevância, dificuldades, equívocos ou desafios do fazer da pesquisa, ou seja, indicadores da “verdade” para o pesquisador?

Da nossa experiência no campo, o método da história de vida implicaria “o pôr em comum” ao sugerir a distribuição de uma força (SERRA, 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
), do atesto do poder que o sujeito informante tem em relação à realização da pesquisa, o que passa pela ideia de assumir a necessidade e a vulnerabilidade localizadas sim entre pesquisadores, acadêmicos, técnicos ou gestores (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003., p. 10), que dependem da autorização daqueles sujeitos, e do acesso àqueles mundos sociais que buscam compreender ou, no caso dos gestores, nos quais pretendem intervir.

Declarar a indispensável participação do outro no processo da pesquisa, tanto é reconhecer o quanto este outro nos toca, quanto reconhecer uma fraqueza. Trata-se da recusa à função panóptica favorecida pela predominância “do olhar” numa “dupla redução [da sensibilidade], oculocentrista e epistemológica, a que a tradição [científica] a submeteu”, e de seus ligamentos/deslizamentos característicos ao moderno - “o ver do manipular, o contemplar do fazer, a ‘teoria’ da ‘técnica’” (SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
, p. 6). Segundo Serra (2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
, p. 5-6), mencionando Sartre, há a possibilidade da inversão do panóptico benthamiano, quando o “olhar não representa apenas um poder do que olha sobre o que é olhado; ele representa, também, um poder do que é olhado sobre o que o olha”.

O risco do “pôr em comum”, um percurso analítico

Reproduzindo a frase de Benjamin (1987)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987., Ecléa Bosi (1994BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 88), ao mencionar a relação entre memória e narrativa, nos relembra que “A narração é uma forma artesanal de comunicação”, ressaltando que “[...], é preciso estar sempre confrontando, comunicando e recebendo impressões para que nossas lembranças ganhem consistência” (BOSI, 1994BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994., p. 414). Os aspectos da comparação dos pontos de vista e das trocas nas situações comunicativas mencionados por Bosi (1994)BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. reforçariam o processo de elaboração das autonarrativas.

No que se refere à história de vida na perspectiva da comunicação de proximidade, teoricamente, haveria como mínimo duas formas de relacionar estes dispositivos, e que se implicam mutuamente: a forma mais direta da história de vida compreendida enquanto atividade comunicativa, e aquela que considera a comunicação de proximidade requisito para sua eficácia. No que tange à primeira perspectiva, seria o caso de ponderar que “A análise biográfica se constitui essencialmente numa situação comunicativa”, requerendo atividades comunicativas ou dialógicas

[…]: o informante deve contar sua história de vida; descrever situações de vida, e argumentar sobre problemas significativos e recorrentes em sua vida e como ele/ela se relaciona com isso. O pesquisador, ao trabalhar meticulosamente sobre esse material comunicativo, também se torna ele mesmo mais um interlocutor, integrando o circuito dialógico da produção do conhecimento (CARVALHO, 2003CARVALHO, I. C. M. Biografia, identidade e narrativa: elementos para uma análise hermenêutica. Horizontes Antropológicos, ano 9, n. 19, 2003, p. 283-302., p. 294).

O elemento comunicacional estaria implicado na pesquisa que tem a história de vida enquanto método, em algumas das suas dimensões:

I - entre narrador - e si mesmo, no interior da própria narrativa, quando a possibilidade de (re)cordar e (re)viver a experiência tem como elemento comunicativo o fio condutor que dota de sentido o passado recontado no presente da história de vida (BOSI, 1994BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.);

II - entre narrador - e leitor, enquanto aposta no sensível para o reverberar da voz narrativa em intersubjetividade.

E, se é verdade que Sartre considera tal poder como uma forma de “má fé” - na medida em que o sujeito, colocando-se na situação de objecto, tenta provocar num outro passivo um sentimento de admiração ou de amor -, há toda uma sociologia, que tem em Simmel um dos seus iniciadores e, em Goffman, um dos seus representantes mais conhecidos, que encara tal poder, o poder da “apresentação de si”, como um dos aspectos centrais da relação intersubjectiva (SIMMEL, 1991, p. 226-7; GOFFMAN, 1996; SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
, p. 6).

III - entre narrador - e pesquisador/ouvinte, nos momentos de aproximação e durante as entrevistas, ou seja, nas situações comunicativas - e aqui já se poderia falar da comunicação de proximidade enquanto requisito para a eficácia do método de História de vida, em sendo a palavra aquilo que o viabiliza, pois “A passagem do ‘elemento’ ao mundo das coisas pressupõe também, como elemento decisivo, a linguagem: é a palavra [...] que, fixando as coisas, lhes dá identidade e estabilidade. [e] permite o pôr em comum da ‘comunicação’ (LÉVINAS, 1994b, p. 148; SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
, p. 9).

Na narrativa, este comum é passível de verificação, por exemplo, quando o narrador seleciona “cenas” e “argumentos” que modelam a história de vida a partir das interações com o outro (MARTUCCELLI, 2009MARTUCCELLI, D. Los ejes de la identidad. In: MARTINEZ, D. G. (Coord.). Epistemología de las identidades. Reflexiones en torno a la pluralidad. México: UNAM, Secretaria de Desarrollo Institucional, 2009. p. 61-75.; ORLANDI, 2017ORLANDI, E. P. Eu, Tu, Ele - Discurso e Real da História. Campinas: Pontes Editores, 2017.), ou nas formas de antecipação às indagações do interlocutor (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, P. (Org.). A miséria do mundo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.):

Sr. F. - [...]. Aí desci, perto da casa de minha mãe, fui, peguei o fogão na casa da vizinha, ela me ajudou, botei na cabeça, aí desci pro ferro velho, deu 3 reais e 50, o fogão, aí voltei de novo, passei pá Feira de São Joaquim, fui levar a garrafa de pet pro rapaz que compra na minha mão, [...].

Patrícia - Esse local também era perto da casa de sua mãe e o senhor não foi lá..

Sr. F. - Não fui, pá dizer a verdade a senhora, nem fui. Tinha até vontade de ir lá pá vê qual é o caso, se meu sobrinho terminou de bater laje, se já terminou o serviço dele, ele tá fazendo as coisa aos pouquinho.

Patrícia - E não tem como ir lá somente ver sua mãe, conversar um pouco, e depois ir embora sem...

Sr. F. - ...Sem pobrema, sem nada...

Patrícia - Sem problema, será que não é possível isso?

Sr. F. - É, um Genilson, Genilson lá [do Hospital] da Irmã Dulce, ele tava até me falando [isso]..., Genilson tem uma sala [de atendimento] pá gente conversar, esse negoço do AA [Alcoólicos Anônimos] né?, pessoal que chama, que vai pá lá. (Sr. F. entrevista, 2019, grifo nosso)

Se “a autodesignação do sujeito falante se produz em situações de interlocução nas quais a reflexividade se associa à alteridade” (RICOEUR, 2006RICOEUR, P. Percurso do Reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2006., p. 111), no diálogo/entrevista, o papel do pesquisador-ouvinte comporta a escuta atenta, interativa, e “os dados obtidos são sempre ‘um produto conjunto do entrevistador e do sujeito, i.e., da interação entre eles’ (Helling, 1987: 74). Esta interacção [...] é, aliás, requisito fundamental da eficácia das histórias de vida, enquanto procedimento metodológico” (RIBEIRO, 1995RIBEIRO, M. As histórias de vida enquanto procedimento de pesquisa sociológica: reflexões a partir de um processo de pesquisa de terreno. Revista Crítica de Ciências sociais, n. 44, p. 125-141, 1995., p. 131).

Nesse contexto, a relação entre o pesquisador e o narrador estabelece-se por um “contrato de confiança mútua”, numa “aproximação inter-subjetiva” para o acesso recíproco às duas subjetividades (BERGER e LUCKMANN, 2003BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 2003., p. 57). Aspecto inusitado deste elemento comunicável se dá na partilha do sofrimento: se através da escuta/proximidade, a experiência narrada projeta-se na possibilidade de tornar-se experiência própria do ouvinte, do mesmo modo que o narrador extraiu da sua própria vida e da vida de outros o acervo da sua experiência (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.), na relação sujeito-sujeito (sujeito em transferência ao sujeito) a experiência dolorosa de existir (FREUD, 1997FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.), ou simplesmente o existir, constitui-se partilha. “E sendo ‘entendimento de singularidade a singularidade’, ‘fraternidade com o próximo’, a linguagem é ‘responsabilidade por Outrem’, pela sua ‘dor’ e pela sua ‘falta’ - uma responsabilidade que ‘não reenvia à minha liberdade’ (LÉVINAS, 1994a, p. 233; SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
, p. 11).

No específico das quatro histórias de vida produzidas no estudo de tese, as entrevistas realizadas no campo trazem características das vidas dos narradores que configuram suas condições de sofrimento social, que implicam constrangimentos, e que muitas vezes exigem coragem para a denúncia:

Patrícia: você acha que ela não queria que você saísse [do trabalho doméstico] por que?

Sra. M..: pra eu ficar dentro da casa, tomando conta do menino dela e ser o que? escrava!, que ela botou eu pra tomar conta da casa!, aí, ela pronto, eu acho que ela queria que eu ficasse, na certa porque.... [...], ela me pagava pra tomar conta da criança só que... ela não me pagava o dinheiro certo, ela me pagava assim, um... ela não me pagava [o tom da voz demonstra um constrangimento com a situação, ou com a pergunta], porque naquele tempo o pessoal não pagava salário, ela me dava assim um trocado pra eu... (Sra. M., entrevista, 2018).

Na confluência dos dispositivos metodológicos paradoxais aos quais recorremos no fazer da pesquisa, evidenciam-se dois aspectos que pautam o processo de intersubjetividade: o encontro de mundos e a verdade do outro.

Vários autores registram a possibilidade desse encontro de mundos, de diferentes configurações e pontos de vista, seja nas narrativas (BOSI, 1994BOSI, E. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.; RICOEUR, 2007RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.), seja na história de vida (GALINDO CÁCERES, 1997GALINDO CÁCERES, L. J. Sabor a ti: metodologia cualitativa em investigación social. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1997.), ou em âmbito comunicacional:

Assim como o espaço não é feito de pontos em si simultâneos, assim como nossa duração não pode romper as suas aderências a um espaço de durações, o Mundo comunicativo não é um feixe de consciências paralelas. Os traços se confundem e passam um pelo outro formando uma única esteira de ‘duração pública’ (MERLEAU-PONTY, 1991MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1991., p. 19).

Por sua vez, as histórias de vida descrevem as memórias circunstanciadas e as posições do eu e do outro na cena histórica, e no momento do encontro: implica pensar a “verdade” do outro, pôr mundos em mediação, aproximar pontos de vista diferentes, contrastantes, em suma, um exercício de reconhecimento e de alteridade (LISBOA, 2013LISBOA, M. J. A. O conceito de identidade narrativa e a alteridade na obra de Paul Ricoeur: aproximações. Impulso, v. 23, n. 56, p. 99-112, 2013.), pois “Não suporá a comunicação a ‘transcendência’, a ‘separação radical’, a ‘estranheza’ dos interlocutores, a ‘revelação do Outro a mim’, a ‘experiência de alguma coisa absolutamente estrangeira’, o ‘traumatismo do espanto’?” (SERRA, 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
, p. 4).

Conceitos como sensibilidade pautam a “comunicação de proximidade ética” que se instaura mesmo a partir da relação entre um eu e um tu, desiguais e dessimétricos (SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
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; 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
). Na leitura de Paulo Serra, a filosofia de Lévinas reconstrói o conceito de sensibilidade demarcando-o em três momentos complementares: a sensibilidade afirmada como fruição; a sensibilidade afirmada como proximidade, contato, elemento original da própria linguagem [“a linguagem original”]; e num terceiro momento, “em que a sensibilidade é descrita em termos de ‘fruição’ e de ‘ferida’ (ou ‘sofrimento’), entendidas uma e outra como [...] “vulnerabilidade” (Lévinas, 1990: 102 ss. e passim)” (SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
, p. 7).

Vulnerabilidade ao ponto de uma espécie de desencantamento, refletindo um gesto último de perceber-se no outro, ainda a compreensão mais radical, do outro estrangeiro, “[...] em seu aparecimento na carne do mundo”, relevos, desvios a serem reconhecidos, decifrados, no dizer poético de Merleau-Ponty:

Pois eles não são ficções com que eu povoaria o meu deserto, filhos de meu espírito, possíveis para sempre inatuais, e sim meus gêmeos ou a carne da minha carne. Decerto não vivo a vida deles, estão definitivamente ausentes de mim e eu deles. Mas essa distância torna-se uma estranha proximidade assim que se reencontra o ser do sensível, pois o sensível é precisamente aquilo que, sem sair de seu lugar, pode assediar mais de um corpo (MERLEAU-PONTY, 1991MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1991., p. 15).

O paradoxo da comunicação afirma-se assim no movimento sensível de aproximação e distância que restaura a inteireza do ser, equacionando o problema fundamental de toda a comunicação, que é também o problema fundamental de toda ética, ao interrogar e responder sobre a viabilidade de uma relação do sujeito e da identidade (eu) com a exterioridade e a alteridade (outro) (SERRA, 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
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): “Que essa relação exista, é apenas uma possibilidade, sempre condenada à incerteza e ao risco: ‘Não se poderá, certamente, dizer da comunicação e da transcendência senão a sua incerteza. (...) a comunicação com outrem não pode ser transcendente senão como via perigosa, como um belo risco a correr.’ (LÉVINAS, 1990, p. 190; SERRA, 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
, p. 7-8).

Considerações finais

Ao longo do escrito, buscamos apresentar reflexões acerca da História de vida e da comunicação de proximidade enquanto dispositivos metodológicos paradoxais, no fazer da pesquisa de doutorado, de abordagem qualitativa, descritiva e interpretativa, que objetivou a produção de autonarrativas, evidenciando os processos identitários daqueles sujeitos narradores.

Ao considerarmos as especificidades das circunstâncias de vida daqueles narradores, marcadas de um lado pela insegurança e sofrimento social, e do outro, pela necessidade de escuta e de reconhecimento, além da vulnerabilidade e hesitações da pesquisadora, enquanto elementos partilháveis - dialógicos (intersubjetivos) que assinalaram o trabalho de campo, refletimos o método de História de vida associado ao conceito de comunicação de proximidade, trazido por Paulo Serra (2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
; 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
) a partir da filosofia de Lévinas.

Assim avaliamos a contribuição da comunicação como proximidade ao método da Histórias de vida, que inclui o próprio fazer acadêmico-científico e implica o agir no sentido das possibilidades de realização da pesquisa, ao propor o encontro de subjetividades entre narradores e pesquisador, e ao relacionar as experiências de todos os participantes à elaboração das autonarrativas, que se constituem sempre, de maneira dialógica, entre narrador e ouvinte/leitor.

Diante das intercorrências verificadas no fazer da pesquisa e aplicação do método História de vida, destacamos o paradoxo da comunicação envolvido nas situações dialógicas e as alternativas teórico-epistemológicas oferecidas pela comunicação como proximidade para a compreensão dos desfechos da pesquisa, implicando “o pôr em comum”, e a distribuição de uma força (SERRA, 2006bSERRA, P. Proximidade e Comunicação. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006b. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-p...
).

A adesão à intersubjetividade configura dimensão que permite reconstruir a sensibilidade (SERRA, 2006aSERRA, P. Lévinas e sensibilidade como comunicação originária. Biblioteca on-line de Ciências da Comunicação, Lab-Com/UBI, 2006a. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-levinas-sensibilidade.pdf. Acesso em: 25 fev. 2019.
http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-l...
). Nos termos da pesquisa que tem por método a História de vida, a imersão no jogo da pesquisa não pode ser absoluta, sem acesso a parâmetros, sem marcos para a experiência, que inclui o outro, estranho, de parte a parte, em via de mão dupla, em comunicação.

  • 1
    A tese, defendida em 2021 junto ao PosCultura - IHAC/UFBA, considerou a questão sobre como se constroem e se expressam as identidades de sujeitos que vivem ou viveram em situação de rua no Centro Antigo de Salvador e produziu, através do método de História de vida, quatro autonarrativas. Destas, se sobressaem duas perspectivas analíticas complementares: se de algum modo, todas as quatro histórias de vida produzidas poderiam ser amarradas por um fio que as atravessa implicando um Outro institucional cuja voz no fundo ecoa a presença pastoral, - e se através do conceito de Quadro Social elaborado por Goffman (2012)GOFFMAN, E. Os quadros da experiência social. Uma perspectiva de análise. Petrópolis: Editora Vozes, 2012., a partir de esquemas interpretativos que organizam as experiências sociais, Sampaio (2004) nos leva a compreender a caridade como estrutura social -, emergem também, das memórias e experiências que constituem aquelas identidades narrativas, sujeitos éticos, entre gestos de reflexividade, resistência e de “cuidado de si” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.).
  • 2
    Tomamos de empréstimo a expressão de Galindo Cáceres (1997)GALINDO CÁCERES, L. J. Sabor a ti: metodologia cualitativa em investigación social. Xalapa: Universidad Veracruzana, 1997., em referência a representações (comparáveis e complementares entre si), de como um certo mundo está configurado, em determinado momento. Estas representações assumem significado quando estão relacionadas aos outros objetos configurados.
  • 3
    São aproximadamente coetâneos (têm a mesma faixa etária, entre 55 e 58 anos), e apresentaram 10 anos ou mais de experiência em situação de rua, correspondendo, nestes quesitos, aos percentuais registrados em relação à população em situação de rua em Salvador, Bahia (CARVALHO et al., 2017CARVALHO, M.; SANTANA, J.; SILVA, M. L.; VEZEDEK, L. Cartografias dos Desejos e Direitos. Quem são as pessoas em situação de rua, afinal? Salvador: Centro Projeto Axé de Defesa e Proteção à Criança e ao Adolescente, 2017.). A ligação destes narradores com a área central da cidade obedece a uma gama variada de atividades cotidianas, em tempos distintos, passado e presente. Todos possuem em comum a participação em projetos sociais.
  • 4
    Compreendemos posteriormente que essa última forma expressa uma das variáveis do estudo, que é a questão religiosa. O amigado é aquele que “não teve a benção de Deus e vive em pecado”; nessa construção, o pecado é relevado na relação pelo laço de amizade entre o homem e a mulher.

Disponibilidade de dados

Os autores declaram que os dados que suportam a pesquisa estão disponíveis por meio de solicitação aos autores.

  • Editora responsável: Maria Ataide Malcher
  • Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol

Referências

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    » http://www.bocc.ubi.pt/pag/serra-paulo-proximidade-comunicacao.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2023
  • Aceito
    27 Out 2023
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