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Plataformas, neoliberalismo e o ativismo dos bots: o legislativo e a sociedade a reboque da desinformação

Plataformas, neoliberalismo y el activismo de los bots: El poder legislativo y la sociedad ante la desinformación

Resumo

A estrutura e a agência das plataformas digitais, em especial redes sociais e serviços de mensageria são importantes distribuidores de conteúdos midiáticos nas sociedades democráticas. Examinamos a evolução da web, acentuando questões sobre transparência e o uso de dados pessoais por gigantes tecnológicos. Oferecemos uma perspectiva crítica sobre o modelo de negócios dessas plataformas, explorando conflitos de interesse, valores públicos e bens comuns, bem como o impacto na disseminação de desinformação. Realizamos um levantamento que revela o uso deliberado da desinformação nas redes sociais e nos serviços de mensageria como arma política nas eleições presidenciais de 2022 e apontamos os recursos legais utilizados no enfrentamento.

Palavras-chave:
Plataforma; Neoliberalismo; Ativismo; Desinformação; Eleições 2022

Resumen

La estructura y agencia de las plataformas digitales, especialmente las redes sociales y los servicios de mensajería, son importantes distribuidores de contenidos mediáticos en las sociedades democráticas. Examinamos la evolución de la web, destacando cuestiones sobre la transparencia y el uso de datos personales por parte de los gigantes tecnológicos. Ofrecemos una perspectiva crítica sobre el modelo de negocio de estas plataformas, explorando los conflictos de intereses, los valores públicos y los bienes comunes, así como el impacto en la difusión de información errónea. Realizamos una encuesta que revela el uso deliberado de la desinformación en redes sociales y servicios de mensajería como arma política en las elecciones presidenciales de 2022 y señalamos los recursos legales utilizados en la lucha contra ella.

Palabras clave:
Plataforma; Neoliberalismo; Activismo; Desinformación; Elecciones 2022

Abstract

The structure and agency of digital platforms, especially social networks and messaging services, are essential media content distributors in democratic societies. We examine the evolution of the web, highlighting questions about transparency and the use of personal data by technology giants. We offer a critical perspective on the business model of these platforms, exploring conflicts of interest, public values, and everyday goods, as well as the impact on the spread of misinformation. We carried out a survey that reveals the deliberate use of disinformation on social networks and messaging services as a political weapon in the 2022 presidential elections. We also point out the legal resources used in the fight against it.

Keywords:
Platform; Neoliberalism; Activism; Misinformation; Elections 2022

Introdução

O debate sobre o fenômeno das plataformas digitais vem se intensificando nos últimos anos, a partir do acelerado avanço e sofisticação das tecnologias digitais e seus modelos de operação. Várias pesquisas procuram entender a recente transformação da vida social com a internet. Em seu artigo Data Necropolitics, Antonio Pele (2022)PELE, A. Data Necropolitics. Abolition Democracy 13/13. Nova York: Columbia Center for Contemporary Critical, 2022. Disponível em: https://blogs.law.columbia.edu/abolition1313/antonio-pele-data-necropolitics-2/. Acesso em: 12 dez. 2022.
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se refere à crescente literatura sobre o tema, ilustrando com novos conceitos como Governamentalidade Algorítmica (Antoinette Rouvroy, 2020ROUVROY, A. Entrevista com Antoinette Rouvroy: Governamentalidade Algorítmica e a Morte da Política. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 8, n. 3, 2020, p. 15-28. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/36223. Acesso em: 12 dez. 2022.
https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/...
), Sociedade Expositiva (Bernard Harcourt, 2015HARCOURT, B. E. Exposed: desire and disobedience in the digital age. Londres: Harvard University Press, 2015.), Black Box Society (Frank Pasquale, 2015PASQUALE, F. The black box society. The secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015.), Capitalismo de Vigilância (Shoshana Zuboff, 2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.), Tecnofeudalismo (Cédric Durand, 2021DURAND, C. Tecnofeudalismo: Crítica de la economía digital. San Sebastian: Kaxilda; Buenos Aires: La Cebra, 2021.) e Anti-humanismo Radical (Eric Sadin, 2021SADIN, E. l’intelligence artificielle ou enjeu siècle: anatomie d’un antihumanisme radical. Paris: L’échappée, 2021.). Podíamos juntar a esta representativa seleção, The Plataform Society (José van Dijk, 2019), Capitalismo de Plataforma (Nick Srnicek, 2016SRNICEK, N. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2016.) ou Sociedade do Cansaço (Byung-Chul Han, 2015HAN, B. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2015.), para trazer um ponto comum na análise do momento contemporâneo em profunda transformação com a emergência de tecnologias apontada por Pele (2022PELE, A. Data Necropolitics. Abolition Democracy 13/13. Nova York: Columbia Center for Contemporary Critical, 2022. Disponível em: https://blogs.law.columbia.edu/abolition1313/antonio-pele-data-necropolitics-2/. Acesso em: 12 dez. 2022.
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, p. 1):

“... esses debates compreendem como nossa existência social e futuro estão sendo moldados pelo desenvolvimento de novas tecnologias, guiadas pela rentabilidade do lucro e lutas pelo poder...”.

As análises em torno da Web 2.0, segunda geração da World Wide Web, reforçava a interação social, e apostavam na colaboração e nos benefícios dessa transformação que capacitou indivíduos a criar negócios, comercializar mercadorias e se comunicar on-line sem intermediários corporativos ou estatais, a chamada disrupção inovadora. A despeito de as novas iniciativas e desenvolvimento tecnológico terem desencadeado uma série de benefícios, a realidade atual da web é outra:

“Após duas décadas de utopismo digital, marcadas pela adoção incondicional das últimas vogas de Palo Alto e de Shenzhen, o mundo enfim entrou numa era de sobriedade digital” (MOROZOV, 2018MOROZOV, E. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 7).

Grandes empresas de tecnologia constroem ambientes digitais, que alteram a forma como as pessoas trabalham, se comunicam, compram, vendem e consumem produtos ou serviços. A discussão atual está mais centrada em contrapor as promessas das plataformas de oferecer serviços personalizados e contribuir para a inovação e para o crescimento econômico em contraste com a falta de transparência, de responsabilização, de concentração de poder e uso massivo de dados pessoais - base desses oligopólios, em sua maioria empresas americanas. A Apple com dispositivos e aplicativos de comunicação digital, a Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) com as redes sociais e serviço de mensageria, a Alphabet Inc. (Google e YouTube) no sistema de buscas na internet e transmissão de vídeos, a Amazon como protagonista no mercado de comércio eletrônico serviços de computação em nuvem e a Microsoft com domínio de softwares e sistemas operacionais são chamadas de Big Five. Regem não só o mercado de tecnologia, como se tornaram verdadeiros Impérios da Comunicação (WU, 2012WU, T. Impérios da Comunicação. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.), não obstante lutarem arduamente para não serem reconhecidas como tais e, assim, fugir de regulações que estabeleçam direitos e deveres.

As plataformas tecnológicas globais deixaram de ser vistas como companheiras inofensivas e invisíveis, empenhadas em amenizar, ou mesmo, eliminar as arestas da existência cotidiana - sempre em nome de um compartilhamento descomplicado e de uma transparência universal. Agora, tais plataformas são cada vez mais percebidas como um bloco poderoso, com interesses mercantis ocultos, lobista e projetos de dominação do mundo (MOROZOV, 2018MOROZOV, E. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018., p. 7).

Juntas, estas empresas possuíam, no terceiro trimestre de 2022, um valor de mercado de US$ 6,7 trilhões, cerca de R$ 34 trilhões (site Valor Invest, 2022), o equivalente a mais de quatro vezes o PIB brasileiro (US$ 1,6 trilhão) ou a sexta posição no ranking mundial elaborado pelo Fundo Monetário Internacional, à frente da Alemanha (7ª posição, com um PIB de US$ 3,78 trilhões). Tamanho poder econômico, concentração de mercado, inovação tecnológica não resultaram na manutenção da internet como um ambiente saudável e levantaram uma discussão necessária sobre benefício privado e ganho corporativo versus interesse público e benefícios coletivos. Nesse ponto, temos outra questão em comum com as pesquisas citadas: o imbricamento com o sistema neoliberal.

A partir desta concentração de poder, propomos neste artigo um olhar para as plataformas que enfatize os conflitos de interesse, os valores públicos e bens comuns levantando questões para uma reflexão sobre como o modelo de negócios das grandes plataformas, produto do sistema capitalista neoliberal, vem estendendo seus domínios no fluxo comunicacional contemporâneo, definindo o quê, quem, quando, onde, como e porque terá acesso ao conteúdo digital. Até pouco tempo, estas eram apenas as cinco perguntas que o lide (primeiro parágrafo de uma matéria) tinha que responder, item básico de qualquer manual de redação jornalística. Ironicamente, serve para demonstrar como as plataformas, em especial as redes sociais, desinstitucionalizaram a produção e circulação de informação e opinião, atingindo diretamente as empresas de mídia e assumindo o controle hegemônico sobre a circulação da comunicação. Esses oligopólios estrangeiros lideram não só a comunicação digital no mundo como também o mercado publicitário sem que haja uma legislação específica com regras que estabeleçam transparência e responsabilidades no funcionamento e garantias para a população.

A título de ilustração das consequências desse vazio regulatório, realizamos um levantamento que expõe como as redes sociais e serviços de mensageria foram instrumentos da desinformação e do discurso de ódio com o claro propósito de tumultuar e influir nas eleições presidenciais de 2022. Apontamos também os recursos legais utilizados pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral) para tentar combater o uso deliberado da desinformação como arma de ação política e garantir a integridade das eleições.

Plataformas e o neoliberalismo

Não deveria surpreender o domínio e a concentração de poder nas Big Five. Estas empresas de tecnologia controlam o tráfego social, econômico e a infraestrutura de nossa sociedade por meio de um sistema impulsionado por bots, algoritmos e alimentado por dados (HARCOURT, 2015HARCOURT, B. E. Exposed: desire and disobedience in the digital age. Londres: Harvard University Press, 2015.; MOROZOV, 2018MOROZOV, E. Big Tech: A ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.; ROUVROY, 2020ROUVROY, A. Entrevista com Antoinette Rouvroy: Governamentalidade Algorítmica e a Morte da Política. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 8, n. 3, 2020, p. 15-28. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/36223. Acesso em: 12 dez. 2022.
https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/...
; VAN DIJCK, POEEL, WAAL, 2018MENDES, L. PL das Fake News não combate desinformação, diz Google. Poder 360. 11.mar. de 2022. Disponível em: https://www.poder360.com.br/congresso/pl-das-fake-news-nao-combate-desinformacao-diz-google/. Acesso em: 13 nov.de 2023
https://www.poder360.com.br/congresso/pl...
; ZUBOFF, 2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.).

É importante definir alguns termos cruciais para esta discussão, como os conceitos de ‘algoritmo’ e de ‘bot’. Algoritmos são definidos, na matemática e ciência da computação, como uma sequência finita de ações executáveis que visam obter uma solução para determinado tipo de problema. No caso das redes sociais contemporâneas, o ‘tipo de problema’ a ser solucionado consiste na ‘curadoria’ de conteúdos oferecidos a cada usuário/a, elaborada com base nos temas previamente buscados ou aprovados (por meio do botão “like” ou por outros tipos de engajamento). Um ‘bot’ ou ‘chatbot’ é um programa de computador semiautônomo, guiado por um algoritmo para emular a conduta discursiva de um/a participante humano em interações por escrito. Bots já são usados há quase uma década em serviços de Call Center mediados por texto por grandes companhias. Porém, na medida em que uma rede social exige relativamente poucas informações de uma pessoa para se tornar ‘participante’, é muito fácil para um/a programador/a fornecer dados falsos e criar perfis falsos, que passam a ser utilizados por bots, que participam como atores discursivos legítimos nos ambientes digitais.

É importante destacar a possibilidade de programar os bots com diferentes ‘perfis’ discursivos. Um bot pode ser programado para ser agressivo e ofender pessoalmente qualquer pessoa que o conteste. Pode ser planejado também para emular uma pessoa “ponderada”, “ingênua”, “informativa”, “questionadora” etc. Assim, uma ‘comunidade discursiva’ constituída com a presença intensiva de bots pode ocupar qualquer campo de debate nas redes, discutindo entre si e deixando para usuárias/os individuais que acessam esses ambientes a forte impressão de predomínio na arena pública da posição desejada pelos programadores/as (ou melhor, por quem os/as contrata). Uma máquina de produzir hegemonia. A este uso particular da tecnologia de chatbots denominamos ‘bot ativista’.

Reduzir este complexo universo de fenômenos às artimanhas do “ambicioso garoto prodígio” Mark Zuckerberg (hoje com 38 anos), que aos 18 montou um império de bilhões de dólares, ou às excentricidades da pessoa mais rica do mundo, Elon Musk, que num processo conturbado adquiriu o Twitter, é não levar em conta o contexto histórico, econômico e as contradições do sistema capitalista global. São atores sociais emergentes de uma nova fase do capitalismo sob a égide do neoliberalismo. Segundo Harvey (2018)HARVEY, D. O Neoliberalismo. História e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2018., trata-se de uma doutrina pautada em práticas político-econômicas que propõem o bem-estar humano a partir da capacidade empreendedora individual, em um regime pleno de propriedade privada, livres mercados e livre comércio. Este modelo implica em uma tríade composta pela desregulação, privatização e retirada do Estado da ordem econômica. O papel do Estado nesse modelo seria de garantir a qualidade e integridade do dinheiro, cuidar das estruturas e funções militares de defesa, da polícia e o sistema legal requerido para o pleno funcionamento do modelo neoliberal (HARVEY, 2018HARVEY, D. O Neoliberalismo. História e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2018.).

Serviços oferecidos pelas plataformas não são gratuitos. Redes sociais on-line são monetizadas por meio da automação de conexões entre usuárias/os, conteúdo, dados e publicidade. De acordo com o Digital AdSpend, no primeiro semestre de 2022, 81% do total do investimento em publicidade digital no Brasil se destinou às plataformas de mídias sociais (52%) e sistemas de busca (29%). Empresas de mídia e comunicação receberam apenas 18% da verba digital, que representa mais de 50% das verbas totais de mídia dos principais setores brasileiros. Uma das principais razões por trás dessa movimentação das empresas de tecnologia contra a PL 2630 seriam as interferências em seus modelos de negócio, o que poderia dificultar o uso de dados de usuárias/os para publicidade digital, sua principal fonte de renda, como aponta Caitlin Mulholland, professora de Direito Civil da PUC do Rio de Janeiro, em conversa com Ana Frazão, professora de Direito Comercial e Econômico da Universidade de Brasília, no podcast Direito Digital, durante o episódio dedicado a PL das “Fake News”, em abril de 2022.

Neste contexto, para Zuboff (2020)ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020., chegamos à era do capitalismo de vigilância - uma nova ordem econômica que reivindica a experiência humana como matéria-prima gratuita para práticas comerciais dissimuladas de extração, previsão e vendas. Ou seja: não somos “o produto” das redes sociais, mas sim uma fonte inesgotável de dados, que são usados como matéria-prima para empresas preverem comportamentos e, com isso, lucrarem. A ação preventiva é mais uma particularidade da plataformização da sociedade. “A melhor maneira para se ter certeza do futuro é, de fato, produzi-lo no presente” (ROUVROY, 2020ROUVROY, A. Entrevista com Antoinette Rouvroy: Governamentalidade Algorítmica e a Morte da Política. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 8, n. 3, 2020, p. 15-28. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/36223. Acesso em: 12 dez. 2022.
https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/...
, p. 19).

Nesse sentido, o ecologista das mídias Douglas Rushkoff (2016RUSHKOFF, D. The New Nationalism Of Brexit And Trump Is A Product Of The Digital Age. Fast Company, 07 jul. 2016. Disponível em: https://www.fastcompany.com/3061574/the-new-nationalism-of-brexit-and-trump-is-a-product-of-the-digital-age. Acesso em: 7 abr. 2023.
https://www.fastcompany.com/3061574/the-...
, s/p) diz que movimentos populistas de extrema direita como o Brexit e o trumpismo são efeitos do amplo uso das mídias digitais:

A Internet deveria quebrar essas últimas fronteiras entre o que são estados-nação essencialmente sintéticos e anunciar uma nova comunidade global de pares. Os governos nacionais foram considerados extintos. Mas a era da Internet, na verdade, anunciou o resultado oposto. Não estamos avançando em direção a uma nova sociedade global, mas recuando para o nacionalismo. Em vez de nos movermos em direção às cores da mistura racial da Benetton, encontramos muitos anseios por um passado fictício, quando as pessoas gostam de pensar que nossas raças eram distintas e tudo estava bem. (...) Todos os programas de computador se resumem a uma série de 1s e 0s, ligados ou desligados. Essa lógica chega às plataformas e aplicativos que usamos. Tudo é uma escolha. (...) Você enviou o e-mail ou não? Não há intermediários. Portanto, não é de admirar que uma sociedade funcionando nessas plataformas tendesse a formulações igualmente discretas. Gosta ou não? Preto ou branco? Rico ou pobre? Concorda ou discorda? Em um ciclo de feedback autorreforçado, cada escolha que fazemos é notada e executada pelos algoritmos que personalizam nossos feeds de notícias, isolando ainda mais cada um de nós em nossa própria bolha de filtro ideológico. Nenhuma das milhares de pessoas que aparecem em meu próprio feed do Twitter apoia Brexit ou Trump. Para essas pessoas, tenho certeza de que o inverso é verdadeiro. A Internet nos ajuda a tomar partido.

Todos esses elementos sustentam o ecossistema que tornou a internet essencial para a participação na sociedade sob a subordinação ao capitalismo de vigilância (ZUBOFF, 2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020., p. 22). A inserção social pressupõe a dependência numa infraestrutura comercial baseada no fornecimento compulsório e gratuito de dados por parte das/os cidadãs/os. Estes dados posteriormente analisados, minerados e modificados são a fonte de receita do sistema de plataformas. Assim, “o capitalismo de vigilância impõe uma escolha fundamentalmente ilegítima, que os indivíduos do século XXI não deveriam ter de fazer, e essa normalização nos deixa aprisionados, mas com a sensação de felicidade” (ibidem, 2020, p. 26).

Rouvroy (2020ROUVROY, A. Entrevista com Antoinette Rouvroy: Governamentalidade Algorítmica e a Morte da Política. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 8, n. 3, 2020, p. 15-28. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/36223. Acesso em: 12 dez. 2022.
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, p. 25) atribui esse fenômeno a uma “passividade digital espantosa” e suas consequências:

Muitas pessoas pensam que, com a ajuda da tecnologia, votos digitais, petições e insultos mudarão as coisas, e até levarão a assembleias de cidadãos. Não quero criticar tudo isso, mas o insulto on-line é o que alimenta o capitalismo algorítmico. Passar tempo sendo insultado no Facebook é o que alimenta a besta.

Assim evidencia-se o modelo: prosperam ao extrair dados pessoais e ao vender a anunciantes previsões sobre o comportamento de usuárias/os. Para que os lucros cresçam, os prognósticos devem ser certeiros. Temos então outra questão: não é necessário apenas prever: trata-se de modificar em grande escala os comportamentos humanos (ZUBOFF, 2020ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.), não apenas como consumidoras/es, mas como cidadãs e cidadãos. Os oligopólios que operam sob o modelo de plataformas possuem normas e valores específicos, em especial os princípios do sistema capitalista americano, que podem ou não conflitar com valores fixados nas estruturas sociais mundiais onde operam. Por atuarem com base no processamento algorítmico, cuja fórmula não é revelada, não estão abertos ao controle democrático. Van Dijck (2019VAN DIJCK, J. A Sociedade da Plataforma: entrevista com José van Dijck. Digilabour, 6 mar. 2019. Disponível em: https://digilabour.com.br/a-sociedade-da-plataforma-entrevista-com-jose-van-dijck/. Acesso em: 12 dez. 2022.
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, s/p) alerta: “Assim, a ideologia do neoliberalismo define a arquitetura da nossa sociedade conectiva. Uma arquitetura que não deixa espaço para setores públicos, valores públicos e espaço público”.

O conceito de governamentalidade algorítmica de Rouvroy (2015) aproxima-se desta visão de Van Dijck (2019)VAN DIJCK, J. A Sociedade da Plataforma: entrevista com José van Dijck. Digilabour, 6 mar. 2019. Disponível em: https://digilabour.com.br/a-sociedade-da-plataforma-entrevista-com-jose-van-dijck/. Acesso em: 12 dez. 2022.
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ao pressupor que o governo do mundo social está sendo baseado no processamento algorítmico de grandes volumes de dados e não em políticas, leis e normas sociais, e que os dados são excessivamente centralizados por grandes companhias, fora de qualquer controle de natureza democrática.

A governamentalidade algorítmica, por outro lado, considera a otimização da situação atual para que ela permaneça o mais favorável possível a certas partes interessadas. É uma nova forma de racionalidade, a otimização de uma multiplicidade de funções objetivas justapostas, que hoje são determinadas principalmente por interesses industriais. O neoliberalismo nos levou a um lugar onde tudo passa a ser calculável (ROUVROY, 2015, p. 20).

O sistema neoliberal sempre demandou tecnologia para geração de informações, armazenamento e análise de bases de dados visando orientar decisões mercadológicas, o que acarretou investimentos em tecnologias de informação. No entanto, o volume e a mercantilização atual dos dados são sem precedentes. Essa extração, compilação de informações pessoais e privadas são fontes de dossiês sobre quem somos e estão à disposição de agentes públicos e privados: imensas bases de dados pessoais (cadastros preenchidos pelos/as próprios/as usuários/as) estão à venda, legal ou ilegalmente. Explorando o desejo de acessar tudo o tempo todo, a tecnologia digital está quebrando quaisquer fronteiras que ainda existam entre o estado, o mercado e o domínio privado. Este cenário digital é denominado por Bernard Harcourt (2015)HARCOURT, B. E. Exposed: desire and disobedience in the digital age. Londres: Harvard University Press, 2015. de sociedade expositiva, uma sociedade com níveis de exibição inéditos, ao mesmo tempo que é continuamente observada e influenciada. O padrão, na visão de Harcourt (2015)HARCOURT, B. E. Exposed: desire and disobedience in the digital age. Londres: Harvard University Press, 2015., e também na de Zuboff (2020)ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020., Van Dijck (2019)VAN DIJCK, J. A Sociedade da Plataforma: entrevista com José van Dijck. Digilabour, 6 mar. 2019. Disponível em: https://digilabour.com.br/a-sociedade-da-plataforma-entrevista-com-jose-van-dijck/. Acesso em: 12 dez. 2022.
https://digilabour.com.br/a-sociedade-da...
, Rouvroy (2020)ROUVROY, A. Entrevista com Antoinette Rouvroy: Governamentalidade Algorítmica e a Morte da Política. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, v. 8, n. 3, 2020, p. 15-28. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/article/view/36223. Acesso em: 12 dez. 2022.
https://periodicos.unb.br/index.php/fmc/...
, estaria reconfigurando nossas relações políticas e remodelando nossas noções do que significa ser um indivíduo.

“Disso decorre o interesse do neoliberalismo pelas tecnologias de informação e sua promoção dessas tecnologias” (HARVEY, 2018HARVEY, D. O Neoliberalismo. História e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2018., s/p). Desta forma, a conquista do bem social é intrinsecamente relacionada à potencialidade e aos resultados positivos das transações de mercado.

Autorregulação

A tecnologia de ponta corre três vezes mais rápido que os negócios normais. E o governo anda três vezes mais devagar que os negócios normais. Então temos uma diferença de nove vezes [...]. O que você quer fazer é se assegurar de que o governo não atrapalhe e atrase as coisas.

Andy Grove

A citação acima é do ex-CEO da Intel Andy Grove e constitui o mantra das gigantes de tecnologia. Este tipo de argumento é característico das gestoras de plataformas, que assim como outras empresas, se desenvolveram sob a hegemonia do discurso neoliberal de livre mercado e recorrem a esses preceitos para justificar sua liberdade de ação. “Na medida em que julga que a troca de mercado possui uma ética em si capaz de servir de guia a toda ação humana, e que substitui todas as crenças éticas antes sustentadas” (REAVOR apudHARVEY, 2018HARVEY, D. O Neoliberalismo. História e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2018., s/p), o neoliberalismo enfatiza a significação das relações contratuais no mercado (HARVEY, 2018HARVEY, D. O Neoliberalismo. História e implicações. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2018., s/p). Nessa lógica, os “inimigos” da prosperidade empresarial seriam a regulação e a supervisão estatal. Revigoram a crença neoliberal de um mercado autorregulador dotado de uma força “natural” de tamanha complexidade e perfeição que demanda total liberdade do Estado.

O desproporcional poder econômico, político e social das plataformas digitais vem despertando a atenção em países de todo mundo. A discussão e disputas em tribunais para a regulação das plataformas, especialmente as que operam redes sociais e serviços de mensageria, têm causado controvérsias. As plataformas alegam que são empresas de tecnologia e que, portanto, não se enquadram nas regras e responsabilidades de empresas de comunicação. Como intermediárias, conectoras, segundo este discurso, não poderiam ser responsabilizadas pelo conteúdo veiculado. Ao mesmo tempo, a cada ação legal, se defendem pela argumentação de liberdade de expressão, direito fundamental, garantido pelo artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, especificamente no Brasil, pelo artigo 5º de nossa Constituição Federal, que afiança a manifestação do pensamento, possibilidade de o indivíduo emitir suas opiniões e ideias ou expressar atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, sem interferência ou eventual retaliação do governo. Ressalta-se que o exercício dessas liberdades não é ilimitado. Todo abuso e excesso, especialmente quando verificada a intenção de injuriar, caluniar ou difamar, podem ser punidos conforme a legislação Civil e Penal. Nesta questão, as empresas se esquivam. Apresentando-se como meras intermediárias, argumentam que não poderiam ser responsabilizadas.

Outro ponto sustentado contra a regulação - a liberdade de imprensa - decorre do direito de informação. É a possibilidade de a/o cidadã/o criar ou ter acesso a diversas fontes de dados, tais como notícias, livros, jornais, sem interferência do Estado de acordo com a Lei 2.083/1953 que atesta tanto a liberdade de publicação e circulação de jornais ou meios similares dentro do território nacional quanto a punição de quem praticar abusos no seu exercício. Estarão sujeitos às penas quem publicar notícias falsas ou divulgar fatos não verdadeiros, truncados ou deturpados, que provoquem alarma social ou perturbação da ordem pública. Assim, essas empresas não querem ser consideradas ‘veículos de comunicação’ para não serem responsabilizadas.

No Brasil, o projeto de lei 2630, de 2020, a autodenominada Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, é a matéria mais avançada no caminho regulatório. Apelidado de PL das Fake News, o texto apresenta mais elementos para regular o mercado das plataformas de comunicação - provedores de redes sociais, ferramentas de busca e mensageria instantânea -, cujo número de usuárias/os registradas/os no Brasil seja superior a 10 milhões, do que propriamente apenas combater a desinformação. Como deixa claro seu nome original, é uma tentativa de estabelecer direitos da/os usuária/os e deveres dessas empresas por meio de medidas de transparência nos modelos de negócios e nas ações das plataformas, além de atribuir responsabilidades e, consequentemente, possibilidade de punição.

O projeto apresentado no Senado Federal em 2020 seguiu para a Câmara e, neste processo de tramitação, sofreu várias alterações, causou controvérsia movimentando as Big Techs em um forte lobby no Legislativo e na mobilização da opinião pública. Ante a possibilidade de a matéria ser votada definitivamente na Câmara dos Deputados no primeiro semestre de 2022, precedendo as eleições, Google, Mercado Livre, Facebook, Twitter e Instagram divulgaram uma carta conjunta, em fevereiro de 2022, contra o projeto de lei 2360. As empresas argumentam que o texto deixou de se basear no combate à desinformação e passou a “representar uma potencial ameaça para a internet livre, democrática e aberta” (Site Poder 360, 2022). Estrategicamente, as empresas se autodenominam como “plataformas de tecnologia”, destacam a desinformação e se colocam como agentes capazes de combatê-las desde que não haja regulação. “A moderação de conteúdo on-line é uma tarefa que exige que as plataformas tomem medidas rápidas diante de novas ameaças. Por isso, precisamos de flexibilidade para poder agir para remover conteúdo nocivo”.

Em 2 abril, dois dias após o relator do projeto na Câmara, Orlando Silva (PC do B-SP), apresentar o parecer final para votação em regime de urgência na Câmara de Deputados, o Google lançou uma campanha publicitária contra a PL sob a alegação de que o texto poderia “obrigá-la” a financiar notícias falsas. Foram publicados anúncios pagos nos principais veículos impressos do país. Essa estratégia retórica busca sempre caracterizar automaticamente toda e qualquer regulação de plataformas como prejudicial, enquanto o que se busca é ampliar e democratizar o acesso às informações. Escândalos, como o do Facebook com a Cambridge Analytica que influenciaram na vitória do Brexit e na eleição de Donald Trump em 2016, demonstraram que o modelo baseado na autorregulação das plataformas, no qual as empresas desenvolvem seus serviços e ambientes digitais sem qualquer controle externo regulatório, ficou obsoleto por ser incapaz de mantê-lo sustentável por si só.

No dia 6 de abril, parlamentares rejeitaram em plenário o pedido de urgência para votação do PL 2630 com 249 votos a favor, uma abstenção e 207 votos contrários. Eram necessários 257 votos para confirmar a urgência, ou seja, maioria absoluta.

Um caso emblemático: desinformação e as eleições de 2022

Sem uma legislação específica que atribua responsabilidades e transparências às plataformas digitais, o combate à desinformação é feito caso a caso. Um enxugar de gelo. Diante deste cenário, foi instituído, em 4 de agosto de 2021, pelo TSE, o Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação da Justiça Eleitoral. O objetivo é o combate à desinformação relacionada à Justiça Eleitoral e aos seus integrantes, ao sistema eletrônico de votação e ao processo eleitoral, a partir de uma abordagem sistêmica e com a participação atual de 60 entidades e organizações governamentais, incluindo imprensa, agências de checagem de fatos, provedores de internet e telefonia, sociedade civil, Academia e partidos políticos. Atualmente Google, Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp), Telegram, Twitter, TikTok, LinkedIn, Twitch e Kwai integram o programa e assinaram um termo de cooperação que prevê o uso de seus recursos tecnológicos na realização de ações contínuas para coibir a disseminação de conteúdo falso durante a campanha eleitoral e enfrentar redes estruturadas de desinformação.

Contudo, a despeito desses esforços, o TSE concluiu que o primeiro turno das eleições de 2022 foi marcado por “uma intensa proliferação de notícias falsas relacionadas ao processo eleitoral”. As principais mensagens desmentidas pela Justiça Eleitoral e pelas nove agências de checagem parceiras do TSE foram acusações e teorias conspiratórias de fraudes nas urnas, análises equivocadas dos Boletins de Urna divulgados pelo TSE e mentiras sobre o funcionamento do sistema de totalização (responsável por somar os votos de todo o eleitorado brasileiro). Entre as que mais repercutiram estão vídeos sobre a existência de um algoritmo capaz de ditar o padrão de funcionamento do processo e travar a transmissão dos votos do Nordeste e afirmativas que hackers russos invadiram o sistema para beneficiar um dos candidatos à presidência e que com a descoberta do esquema, o Exército interveria para impedir a consolidação do plano.

Em 20 de outubro, faltando dez dias para o segundo turno, o TSE aprovou, por unanimidade, a resolução 23.714, que “dispõe sobre o enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral” e proíbe a “divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos, ou gravemente descontextualizados” que visassem abalar os processos de votação, apuração e totalização de votos. Após decisão colegiada que determine a imediata remoção de conteúdo desinformativo, sob pena de multa de R$ 100 mil a R$ 150 mil por hora de descumprimento, a contar do término da segunda hora após o recebimento da notificação, a própria Presidência do TSE poderá determinar que os mesmos conteúdos irregulares replicados em outros canais sejam retirados.

A resolução diminuiu ainda de 24 horas para até duas horas o prazo para as redes sociais retirarem conteúdos falsos e para apenas uma hora no fim de semana da eleição. “Uma vez verificado pelo TSE que aquele conteúdo é difamatório, é injurioso, é discurso de ódio ou notícia fraudulenta, não pode ser perpetuado na rede”, explicou o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, e completou justificando que a medida visa reduzir o tempo que informações inverídicas permanecerão no ar. Até então, os advogados dos candidatos precisavam abrir novas ações para derrubar o link, mesmo que apresentassem conteúdos idênticos aos que já haviam sido apontados como falsos pela corte. Ou seja, era preciso acionar o TSE para que ele julgasse e tomasse a decisão de mandar retirar ou não o conteúdo. A partir da resolução, Moraes passou a agir de ofício, sem necessidade de alguma iniciativa externa, ampliando os poderes do TSE, o que vem sendo objeto de críticas quanto à autocracia do ministro.

Outro ponto da resolução autoriza a suspensão temporária de perfis, contas ou canais mantidos em mídias sociais caso haja uma produção sistemática de desinformação e proíbe a propaganda eleitoral paga na internet, como anúncios, monetização e impulsionamento de conteúdos, no período que começa 48 horas antes do dia da votação e se encerra 24 horas depois do segundo turno. Conforme o texto, esse tipo de propaganda deveria ser removido de forma imediata pelas redes, sob risco de multa igual à estabelecida para a retirada de conteúdos considerados fraudulentos ou ofensivos pelo plenário da corte.

Um balanço do TSE contabilizou que nas 36 horas que antecederam o segundo turno das eleições, o ministro Alexandre de Moraes determinou às plataformas a retirada de 354 impulsionamentos de notícias falsas, desmonetização de sete sites, remoção de 701 URLs a partir de 12 decisões judiciais e suspensão de 15 perfis de grandes propagadores de fake news e cinco grupos do Telegram, que totalizavam 580 mil membros. Todas as plataformas cumpriram as determinações em menos de uma hora. Tanto TSE quanto as Missões de Observação Eleitoral concluíram que o processo eleitoral brasileiro de 2022 foi marcado por uma aprimorada rede de desinformação.

O motim fascista de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, viria a ser o epílogo dramático desta guerra de agitação política, que exemplifica o potencial de dano de um processo político à revelia do ordenamento jurídico.

Conclusão

As últimas eleições deixaram evidente o que já se observa no mundo: as qualidades conectivas das plataformas on-line não se traduzem automaticamente em valores públicos (VAN DIJCK, 2019VAN DIJCK, J. A Sociedade da Plataforma: entrevista com José van Dijck. Digilabour, 6 mar. 2019. Disponível em: https://digilabour.com.br/a-sociedade-da-plataforma-entrevista-com-jose-van-dijck/. Acesso em: 12 dez. 2022.
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, s/p). A legislação está muito atrasada e as iniciativas são pontuais e ineficientes diante do poderio de muitas plataformas gerirem questões da vida em sociedade, como o exemplo da disseminação em massa de desinformação a partir de bots e discursos de ódio. Foi necessária a criação de resolução para obrigar as plataformas a terem celeridade na retirada de mentiras que pretendiam tumultuar e influenciar a votação. Outros valores públicos como privacidade, segurança e proteção ao consumidor/a também vem estimulando movimentos de regulação, muitas vezes impulsionados depois de algum escândalo e, ainda assim têm sido ponto de discórdia e resistência entre proprietários de plataformas.

As eleições de 2022 mostraram ser infundado o argumento do presidente do Google de que a regulação tiraria a agilidade das plataformas. E mais, a legislação, o programa de informação e a resolução que deu mais rapidez na remoção de conteúdo desinformativo se mostrou ainda assim insuficiente. Em entrevista coletiva após o resultado das eleições, Alexandre de Moraes reconheceu a necessidade de alteração da legislação e de se regulamentar as plataformas. E apontou uma das questões que para ele é a mais importante:

Não é possível que as plataformas continuem sendo consideradas empresas de tecnologia, sendo que são as maiores empresas de mídia do mundo e as que mais arrecadaram com isso. A mídia tradicional tem total liberdade de expressão, só que liberdade com responsabilidade. As plataformas ficam num vácuo jurídico exatamente porque são consideradas empresas de tecnologia (ConJur, 30 out. 2022).

É uma discussão necessária, mas que chega atrasada; muitas plataformas se tornaram surpreendentemente influentes antes que um debate real sobre valores públicos e bens comuns pudesse começar. Plataformas não podem ser vistas separadas umas das outras, pois dominam o ecossistema midiático ocidental formando um núcleo de infraestrutura e modelo de negócios que se reflete num domínio sobre o espaço público, concentrando setores de mercado, distribuição de dados e informação.

Especialistas em Direito Digital apontam para a necessidade de um amplo debate sobre a garantia da qualidade do fluxo informacional em um regime democrático que inclua outras duas preocupações que estão previstas na PL 2630: a transparência e a responsabilidade. É preciso estabelecer mecanismos para que as/os cidadã/os saibam o que são conteúdos espontâneos, falsos, provenientes de bots e se são impulsionados/patrocinados e também que haja a possibilidade de responsabilização pelas ações on-line (FRAZÃO e MULHOLLAND, 2022FRAZÃO, A.; MULHOLLAND, C. Podcast Direito Digital, abr. 2022. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/00UrtKIkuQinxzA8V1rJwu?si=9f5bd0413aba4be5. Acesso em: 22 jun. 2023.
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).

As redes sociais mudaram nos últimos anos: de um lugar de idílicas ‘comunidades virtuais’ idealizadas para um campo de batalha pelo controle do Estado, com chatbots e algoritmos usados como armas de uma guerra híbrida e nunca claramente declarada. Em tempos do ressurgimento do pensamento fascista, moralista e totalitário, o jornalismo tradicional passa a desempenhar um papel importante na prática de um necessário ativismo pela democracia; por outro, a tecnologia dos algoritmos coloca em cena batalhões de bots, emuladores de ativistas políticos, mas que defendem interesses neoliberais, mimetizados na diversidade dos grupos sociais, colaborando na criação de uma farsa perigosa: a legitimidade advinda de um movimento social supostamente espontâneo.

Para dar algum alento nesse cenário caótico, é bom lembrar que as/os terroristas participantes do motim de 8 de janeiro em Brasília tiveram duas punições exemplares: além da prisão em massa, pesquisas realizadas após os ataques revelaram a condenação do ocorrido por mais de 93% das/os respondentes (GIELOW, 2023GIELOW, I. Datafolha: 93% condenam ataques golpistas e maioria defende prisões. Folha de São Paulo, 11 jan. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/datafolha-93-condenam-ataques-golpistas-e-maioria-defende-prisoes.shtml. Acesso em: 22 jun. 2023.
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).

Ainda assim, na prática, o vazio regulatório dos ambientes on-line continua deixando a sociedade vulnerável tanto às práticas ilícitas nas redes quanto a iniciativas intempestivas e pontuais, sem uma eficiência mais ampla nas garantias do Estado Democrático de Direito.

Disponibilidade de dados

As autoras declaram que os dados que suportam a pesquisa estão disponíveis por meio de solicitação às autoras.

Referências

  • DURAND, C. Tecnofeudalismo: Crítica de la economía digital. San Sebastian: Kaxilda; Buenos Aires: La Cebra, 2021.
  • FRAZÃO, A.; MULHOLLAND, C. Podcast Direito Digital, abr. 2022. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/00UrtKIkuQinxzA8V1rJwu?si=9f5bd0413aba4be5 Acesso em: 22 jun. 2023.
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  • GIELOW, I. Datafolha: 93% condenam ataques golpistas e maioria defende prisões. Folha de São Paulo, 11 jan. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/01/datafolha-93-condenam-ataques-golpistas-e-maioria-defende-prisoes.shtml Acesso em: 22 jun. 2023.
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Editado por

Editora responsável: Maria Ataide Malcher
Assistente editorial: Aluzimara Nogueira Diniz, Julia Quemel Matta, Suelen Miyuki A. Guedes e Weverton Raiol

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2023
  • Aceito
    27 Out 2023
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